Thursday, December 21, 2006

Judith Teixeira em "O homem da Carbonária" de Carlos Ademar


A Eva Moon, pela informação
O romance de Carlos Ademar O homem da Carbonária, editado em Maio de 2006 pela Oficina do Livro, é um interessante caso de maturidade narrativa. Recuperando informação histórica dispersa sobre o primeiro quartel do século XX, realizada a transmigração literária, o resultado é, adentro da estratégia policial e investigativa, um interessante fresco lisboeta.
Este segundo romance do Autor, para além de fornecer importantes pistas paraliterárias, não permite nunca que o leitor abrande na sua perquirição. Não é pois esta voracidade qualidade despicienda. Foi já tomado pela vertigem da leitura que encontrei, na página 247, uma ressalvável menção a Judith Teixeira, que cito de um excurso sobre a "diferença" entre homens e mulheres: "Por exemplo, a escritora Fernanda de Castro, a pintora de cavalete Sarah Afonso, a poetisa Judith Teixeira, não ficam atrás de qualquer homem, nas suas áreas." Tal inclusão no romance é ainda complementada por uma nota informativa breve sobre a vida e a obra da escritora.
Judith Teixeira vai assim iluminando os novos tempos com uma capacidade que ninguém mais poderá reprimir.

Saturday, November 25, 2006

Como Louise Brooks: a beleza das ruínas e das cinzas em "Castelo de Sombras"

Louise Brooks

Em entrevistas dadas ao Diário de Lisboa de 6 de Março de 1923 e à Revista Portuguesa de 24 de Março desse mesmo ano, Judith Teixeira manifesta a clara intenção de publicar um novo livro de versos, que, como o diz a poetisa no jornal supramencionado, será um "outro livro de versos, muito serenos, muito espirituais e que não devem ofender a moralidade literária da policia...".Até então vivia-se ainda o eco do escândalo das primícias literárias de Judith Teixeira, sabendo-se a partir daí, nessas respostas reveladoras do interesse despertado pela poetisa, da nova publicação e do seu teor, nada se conhecendo contudo a respeito do título da obra.E será num contexto de pré-apresentação da obra anunciada que o Diário de Lisboa de 18 de Maio de 1923 (nº 648, p. 3) publicará um soneto de Judith Teixeira intitulado "Atomo", que passo, desde já, a transcrever:Como uma bola de sabão, tão leve,brilhante, luminosa e irisada,sai muitas vezes meu sorriso breveda minha bôca triste e desolada...E nas minhas mãos, petalas de neveduma camelia em neve desfolhada,não cabe a dôr que meu olhar descreve,seguindo a fragil bola iluminada!É que o sorriso que de mim dimanavem traduzir toda a ventura humanasimbolisada em labios de mulher...Que tão depressa é sol de primavera,como luz matinal duma quimera,que mal nasce, começa a entardecer!(Inverno - 922)
O título do soneto é constituído por uma palavra pouco recorrente na poesia portuguesa[1], que é, simultaneamente, um hápax na obra poética judithiana. Tal vocábulo instala desde logo um clima de estranheza, facilitando em pouco o início de processo hermenêutico, vendo-se assim obrigado o leitor a esperar pelo confronto textual e a prescindir momentaneamente desse importante elemento significativo que tantas vezes é adivinhação e catáfora.Ora, partindo para a análise do soneto cujo título pertence ao reservatório lexical judithiano, diga-se desde já que a palavra titular sugere etimologicamente a ideia de indivisibilidade. Iniciando-se o soneto sob o influxo comparativo entre uma 'bola de sabão' e o 'sorriso breve' do sujeito lírico feminino ("Como uma bola de sabão, tão leve, / brilhante, luminosa e irisada, / sai muitas vezes meu sorriso breve..."), numa abertura que é ainda luz, concessão e fugidia alegria ('sorriso breve'), logo, é certo, ofuscada pela permanência do desalentamento: afinal, a alteração cinésica verificada naquela "bôca triste e desolada" é um conseguimento luminar de escassíssima duração temporal, encalhado entre o aparecimento e a desaparição de uma vulgar bola de sabão, cujo esplendor e finitude o sujeito poético observa dolorosamente. Tal atomização inscrita titularmente, que é, afinal, metáfora e destino da mulher, insinua a fluidescência do esplendor físico feminino e a entrada rápida na prescindência desse brilho. E este soneto de Judith Teixeira, erigido na rota do classicismo decassilábico e da correlata tópica amorosa, arrasta consigo, de forma subtil e visível, uma presença do corpo a um mesmo tempo defluente e alarmada: a notação do horaciano tempus fugit, que tão evidente glória granjeou na nossa literatura clássica e maneirista, inscreve-se num destino feminino que é aqui sutura e ruptura com a erótica renascentista. De facto, no percurso desalentado que o soneto transmite, existe uma presença do corpo ('sorriso', 'bôca triste e desolada', 'mãos', 'olhar' e 'labios de mulher') que, sendo tradição, é também, na actualização textual, alarme e desafio.Tal derrogação colaborante da tradição erótica consegue-o ainda a poetisa pelo acúmulo de figuras e processos estilísticos: para lá da inicial comparação, ressuma a riquíssima adjectivação ( em reverso, dupla ou tripla), a personificação, a sinédoque e a metonímia (cf. v. 4), bem como a metaforização invasiva de grande parte do soneto. Mas, de acordo com a vontade da poetisa, e não obstante a mostração do vezo erótico desafiante, visível até na euforia estilística, o tempo é de serenidade e de pacificação. Di-lo o poema, que diz também um choro errante e dolorido pranteando a vida e a vivência do amor na inconstância do des-tino feminino. Destino esse lábil como um átomo.Volvidos dias sobre a publicação do soneto judithiano, o mesmo Diário de Lisboa [2], na rubrica "As nossas Poetizas", publica uma nova entrevista com a escritora ("O livro Castelo de Sombras. O que nos diz a sua autora D. Judith Teixeira."), desta vez tendo por móbil a recente publicação do livro de poemas supramencionado entre parênteses. Tal informação colide com as notícias da tábua biobliográfica apresentadas por Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar na oportuna e importante edição de Poemas , que dão Castelo de Sombras como publicado em Junho de 1923[3]. Ora, o livro foi publicado possivelmente na terceira semana de Maio. Lendo-se o teor da entrevista e as informações acompanhantes não parecem restar dúvidas sobre mês da publicação, não sendo pacífica a data exacta da saída da obra, que deverá, com grande probabilidade, ter vindo a público entre 10 e 19 de Maio.[4] O carácter probabilístico aqui assumido prende-se com a possibilidade de ter havido atrasos de impressão - e só quem não conhece o meio é que descartará tal hipótese -, explicando-se a entrevista do Diário de Lisboa pela necessidade de dar a notícia sobre o acontecimento, não havendo depois tempo para alteração, em caso de atraso na publicação da obra da poetisa. Para esta tese poderá contribuir a notícia do mesmo jornal, de 10 de Julho de 1923 (nº 693, p. 3), que dá como livro novo Castelo de Sombras, o que explica a notação de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar que prescreve o mês de Junho. Até prova em contrário, e sabendo do carácter movediço de todas as problemáticas que se prendam com datas, a obra terá sido publicada em Maio - veja-se o ínicio do texto da entrevista-notícia: "Judith Teixeira acaba de lançar no mercado literario um novo livro de versos." -, precedida pelo anúncio encoberto da mesma através da publicação do soneto "Átomo" em 18 de Maio de 1923, logo seguida pela amostragem textual de 10 de Julho.Voltando à importante entrevista a Judith Teixeira, dela promanam importantes informações, umas reiterando a singularidade humana e poética da poetisa atrás conhecida, outras trazendo novidades autorais sobre assuntos literários e metaliterários. Destacam-se, por exemplo, a anotação estética e intelectual por parte do entrevistador do seu "genio delicadamente feminino", a expressão autoral de uma literatura sincera - de insinceridade, a seu respeito, falará Régio -, bem como a eficácia literária que Judith Teixeira entrevê no título, a possibilidade do leitor construtor, a inapreensão do sentido pleno ou o desvelamento da sua arte poética, exercício artístico resultante da interacção da "beleza tradicional" - leia-se tradição ou memória literária - com a exaltação da vida, não havendo, é certo, "poesia sem amor".Como atrás ficou dito, o Diário de Lisboa nº 693 de 10 de Julho de 1923 transcreveu um conjunto de poemas de que fazem parte os títulos "Tedio", "O Palhaço", "Cantigas de Tristeza", "Maus Presagios" e "Paixão".[5] Não se sabendo, neste caso como no anterior, o autor dos textos jornalísticos, o que é certo é que as informações literárias, não podendo ser imputadas com certeza ao director e fundador do jornal Joaquim Manso, teriam o seu aval. Mas, face ao seu perfil de homem de cultura[6], não andaria ele por lá com mão diurna e até nocturna? Os textos apresentados, esses, procuravam ilustrar a modulação cinérea que recobre o livro de poemas Castelo de Sombras.O título da nova colectânea poemática, que é, como Judith Teixeira o disse atrás, "a rápida explicação do livro" ou "a sintese do que lá está dentro", convoca, olhando tão somente à primeira palavra, a simbologia do proteccionismo e do transcendentalismo. No entanto, o último elemento da intitulação judithiana torna a expressão conflituante, valendo simbolicamente, no integrado todo, como imagem disfórica do destino marcado de forma negativa, infernal e imutável. Neste contexto, Castelo de Sombras é aqui um espaço poético circunscrito às infelicidades vitais, expressando os sentimentos fugitivos, confusos e indeterminados de um ser errante tristemente confinado a uma fortaleza sombria.A melancolia que se levanta e instala no horizonte de expectativa do leitor é iniludível. E, no fundo, essa propriedade doentia e cinérea, ruína que rói e avança, anima a forja criativa desde sempre, levando, nesse ritmo saturnino, a mão do escrevente à escrita. Sem definição que a esgote, a melancolia acompanha nomes como os de Homero, Ovídio, D. Duarte, Nerval, Baudelaire, Holderlin, Novalis, Gontcharov, Kierkegaard e os de boa parte dos poetas portugueses de ontem e de hoje.Judith Teixeira não poderia ficar de fora. Como poderia ela resistir, afinal, a essa força de Eros que, como diria o pessimista dinamarquês, está no coração da melancolia? Como repudiar esse quid arrasador que coloca o ser à beira da vertigem e em face da morte? Como, por último, repulsar essa crise do ser e dos seus fundamentos, se é nesse abalo que o sujeito melhor se conhece?Castelo de Sombras, obra construída na forja saturnina, sugere, desde logo, ser a melancolia um viático para a criação, sendo correcto pensar-se este conceito um correlato da acedia dos monges medievais, que viam nessa crise interna um meio de acesso a Deus, da mesma forma que, afinal, a poetisa aí fazia radicar a sua arte poética.A nova obra de Judith Teixeira terá vindo a lume em Maio de 1923. O primeiro poema, "Ninguém", é bem o exemplo da catáfora titular, nele se exemplificando abundantemente a crise existencial atrás tipificada e aqui expressa, neste poema da hora sombria, por uma fulgurante descrição do estado de incompletude vivido pelo sujeito lírico: "Embriaguei-me num doido desejo / e adoeci de saudade. / Cahi no vago..., no indeciso... / Não me encontro, não me vejo - prescruto a imensidade!...". Tal doença, que, como se viu, é também desafio erótico, é ainda fraccionamento egótico e desejo de mais longe.A modulação dominante na obra é precisamente o recatamento desse estado melancólico, havendo, no entanto, variações de um mesmo tema. Assim, por exemplo, o poema "Primavera": se, por um lado, nele existe um espraiamento de alegria em conexão com os ritos sazonais que o título implica ("Estua arfando a terra inteira / na seiva de miriades de vidas / rompendo - a desabrochar..."), não deixa de ser verdade que essa euforia do embriagamento solar se atenua com o facto do emissor lírico julgar o seu coração um "mago feiticeiro da melancolia". Mas, pese embora o reverso que nele paira, este é um conseguimento no qual a poetisa, de acordo com a entrevista ao Diário de Lisboa de 21 de Maio de 1923, fala "da primavera, do sol" e canta "a alegria de viver". E, depois, ressumam neste Castelo, na mesma senda melancólica estuante de desejo: o amor quase sempre desalentado e em alarme onírico, em poemas como "Duma Carta" ou "Sonho"; as negras asas do fatalismo e da evasão nihilificante (" - Que estará p' ra acontecer?... // - Adeus!... Partir!... Esquecer!") no poema "Maus Presagios", onde perpassa uma afinidade com os dois últimos versos do portal "Inscrição" ínsitos na Clepsydra de Camilo Pessanha ("Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído! / No chão sumir-se, como faz um verme..."; o dolorismo da incompreensão adveniente da introspecção permitida pelo recolhimento observador do sujeito decadente, a partir da janela ogivada do "castelo", na composição "Estranha Dôr" ("Mas, na janela ogivada, / a minha imagem palida, esguia, / tem a mesma atitude macerada, / nostalgica e doentia ... // e escuto a dôr do meu destino, / cada vez mais candente, mais vivida, maior! - A dôr dos tia... // e escuto a dôr do meu destino, / cada vez mais candente, mais vivida, maior! - A dôr dos incompreendidos... / - Estranha dôr!") ou a dor omnipresente e invasora, como acontece no sibilino poema "Inverno" ("Anda a Dôr pelos caminhos, / - ninguem a queira encontrar!..."), no saudosismo roxo do soneto "Poente" ("Sente-se a natureza soluçar... - / As ondas fogem rôxas de Saudade / por entre as rendas brancas do luar!...") e, por exemplo, nas "Quatro Cantigas de Tristeza"; a efusão vital e a surpresa eufórica, afinal, a parte reversa da melancolia, nos sonetos "Alvorecer" ("E eu, acordando alegre, sorridente, / bendigo a brasa rubra refulgente / que Deus entorna em luz pelos relvados."), "Meio Dia" ("Incendeiam-se os montes em redor - / e as vozes quentes sobem no clamor / dum hino á vida, a entoar na serra!") e "A sesta"; a autodescoberta pela libertação nostálgica, no soneto "Quem és?"; o grito libertatário ciente da diferença e do conhecimento subliminar no poema "Sonhando" ("E nos meus olhos rôxos e profundos / andam a desenhar-se novos mundos!... / Rasgando a sombra negra que me veste...), até porque, como o diz Calinescu, "ser moderno é uma opção, e uma opção heróica, porque o caminho da Modernidade está cheio de riscos e dificuldades[7]; e a pulsão mística e antifarisaica do derradeiro poema "Misticismo" ("Senhor! de que me serve este suplício, / se nem Tu conseguiste na agonia / egualar corações no sacrifício?!...").A segunda colectânea de poemas judithiana é, face a Decadência,"muito mais conformista em tom"[8], o que parece sugerir, ainda que contra as palavras displicentes da poetisa em entrevista ao Diário de Lisboa , que a confusão provocada pelo livro inicial provocou uma certa retracção na escolha. Porém, a confiar-se na datação subscrita nos poemas - não existindo razões para nela não se acreditar -, e pensando-se nas aduções de Judith Teixeira confirmando a nova publicação, a arquitectura planificada da obra derroga a sugestão da frase anterior: é que os poemas são escritos entre a Sexta-Feira de Paixão de 1921 e Abril de 1923, tendo, portanto, visíveis confluências temporais com os de Decadência, deles se destacando pela temática unificadora que tem por motivema a composição mais antiga "Misticismo" e adjuvante a coloração violácea dos caracteres titulares impressos na capa.Ora, o desígnio da poetisa viseense era mesmo esse: a criação de um par literário inter-dependente e ocasionalmente conflituante num mesmo corpo com face e reverso, sendo este o castelo de Thanatos, no qual se estabelece a ruptura pela desintegração de todos os laços comunicativos, e aquela o fogo desafiante e abrasador de Eros, armadilha ou liame em ritmo melancolicamente criador.A melancolia judithiana é um cogito da modernidade que se inscreve na esteira de um Kierkegaard ou de um Baudelaire. Esse pessoano "nada que faz mal" que invade a criação da escritora Judith Teixeira, nas palavras de Armando Vasconcelos de Carvalho, a "melhor poetisa portuguesa da moderna geração"[9], e que é o motivo deflagrador da intensidade poética encontrada na sua obra, é, em Castelo de Sombras e na restante obra artística - a página 6 da presente obra anuncia, como obras a seguir, os títulos Cartas a Ninguém e Conferências de Arte, livros que terão sido o a narrativa e a conferência publicadas com diferente título -, o impulso utópico para o futuro, num esforço de mudança e diferença , que é busca de alteridade e regresso à própria sombra. E assim cada passo no ilimitado é também melancolia e realização, outra forma, aliás, de ser morte e ser amor.A Ilustração Portuguesa. Revista semanal dos acontecimentos da vida portuguesa.Vida social, vida política, vida artística, vida literária, vida mundana, vida sportiva., doméstica publicava-se em Lisboa desde 1903 e teve a colaboração literário de inúmeros nomes ligados à literatura, de que destaco, em jeito exemplificativo, os nomes de Albino Forjaz Sampaio, António Sardinha, Aquilino Ribeiro, Carlos Malheiro Dias, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa, João de Barros, Júlio Dantas e Manuel da Silva Gaio. Ora, da mesma forma que para Decadência, também desta vez a publicação semanal, no número de 16 de Junho de 1923, agora na sua 2ª série e com direcção do autor do consabido e importante romance Os Teles d' Albergaria , anota, com palavras recensórias[10], a vinda a lume do novo livro judithiano. Aliás, a escritora já por lá estivera representada, sob o pseudónimo de Lena de Valois, no nº 831 de 21 de Janeiro de 1922 (p. 65), bem como na na revista de 10 de Fevereiro de 1923 (p. 170), através da reprodução de um retrato seu, devidamente identificado, da autoria do futurista e pintor Carlos Porfírio. Voltando de novo ao texto da recensão a Castelo de Sombras assinado por A. de. A, diga-se que as palavras textuais prescrevem a confirmação dos méritos já demonstrados pela poetisa, sem dúvida dotada de indesmentível pessoalidade e "temperamento estético".Alguns dias depois, precisamente em 21 de Junho de 1923, a revista ABC, por mão de Félix Correia, refere-se a Castelo de Sombras de Judith Teixeira como "um reflexo da tempestade sentimental que a agita", o que coloca o novo livro judithiano na campo da volubilidade dos sentimentos.Por último, e como já atrás se disse, o Diário de Lisboa de 10 de Julho de 1923 destaca os poemas "cheios de sinceridade e de misterioso sentido" inseridos na obra Castelo de Sombras, essa muralha construída por acção da dor e da qual se lobrigava, através das sombrias seteiras, um mundo aflito e constrito que irradiava, pela codificação erótico-melan- cólica, sementes de atracção.É ainda o livro em apreço um irrefragável hino à exaltação do individualismo e à diferença , condições, diga-se, que o projectam para o desejado lugar da utopia, que é instaurador, desde logo, de uma melancolia da factura num futuro a promover. E aí, na predominância decadentista que Judith Teixeira nunca renegou, radica, certamente, uma das faces da modernidade que Matei Calinescu tão exemplarmente percorreu em Five Faces of Modernity. Dessa estética pregnante, invasora e multiforme que é a poesia judithiana, sobe um apelo ao auto-reconhecimento de cada um de nós, transformando-se, assim, num tempo de recolhimento que permite o refinamento egótico na busca das suas sombras e ruínas.[1]Esse vocábulo não obtém quaisquer ocorrências em Jean Roche, Sobre o Vocabulário da Poesia Portuguesa , "Fontes Documentais Portuguesas"-VIII, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian - Centro Cultural Português, 1975, nem tão pouco em Andre Camlong, Le Vocabulaire du Sonnet Portugais , "Fontes Documentais Portuguesas"-XXI, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian - Centro Cultural Português, 1986. A palavra 'átomo' aparece, por exemplo, em Camilo Pessanha, no poema de Clepsydra "O meu coração desce". Cf. v. 10: "Átomo miserando...".[2] Cf. p. 5 da edição com o nº 650 de 21 de Maio de 1923 .[3] Judith Teixeira, Poemas , Lisboa, &etc, 1996, p. 241: "1923. Junho. É publicado Castelo de Sombras. Poemas (Lisboa: Imprensa Libânio da Silva).[4] É este o teor integral da entrevista:"Judith Teixeira acaba de lançar no mercado literario um novo livro de versos.Procurámos ser recebidos pela poetisa, e como sempre, o seu genio delicadamente feminino, transpareceu na gentileza com que fômos atendidos, na sua residencia tão elegante como calma e acolhedora.- O meu livro?- Sim, impressões sobre o seu livro. Feição literária que lhe imprimiu. Moldes artisticos com que o tratou...- Comecemos então pelo princípio: Chama-se Castelo de Sombras , um nome simbolico e sugestivo não é? E tambem verdadeiro, quero dizer, correspondendo a um pensamento verdadeiro. É que todos nós sômos a sombra do que outros foram, somos até, ás vezes, a sombra do que fômos, e a arte, quer seja a que os pintores realizam nas suas telas, a que os musicos erguem em espirais de sons, ou a que nós cantamos nas nossas pobres paginas - não é mais que o contorno duma sombra, o reflexo da nossa sincera maneira de sêr.- A justificação do titulo, não é?- Sim, e ao mesmo tempo a rapida explicação do livro - porque o titulo, dalguma maneira deve ser a sintese do que lá está dentro.- Mas o livro é sereno?- Não percebo o que quer dizer com essa palavra - serenidade. Eu estou sempre serena quando faço os meus pobres versos. Se ha exaltação no caso, não é minha...- Como sabe, ao seu primeiro livro atribui-se uma certa morbidez...- Isso já não me interessa; mal iria ao artista ou literato que tivesse de andar de porta em porta a explicar palavras e atitudes, porque duma maneira ou de outra há sempre quem deturpe intenções. Vejo esses casos de censura e opinião, bastante de alto. E quem será - meu Deus! - que possuirá aquela segura , absoluta autoridade e valor, quasi a inspiração divina, que eu entendo indispensavel ao censor? Se a maior parte dos que nos deturpam pudessem conhecer as injustiças que cometem e a desilegancia das suas acções, eu creio que se arrependeriam... Mas vamos ao Castelo de Sombras , e como os castelos têm certa beleza tradicional evocativa, e as sombras não metem medo, eu suponho que os meus leitores não dirão mal. Suponho-o, como os senhores dizem, um livro sereno : Falo da primavera, do sol, canto a alegria de viver - aquela que nem todos têm! - tambem falo do riso, evoco a paixão de Cristo e tambem canto a minha dôr.Os motivos que mais prenderam a minha atenção, foram certos recortes de paisagem, e como não ha poesia sem amor, tambem cantei o amor. E aqui tem o que suponho ser o meu livro. O resto que eu não vejo, os senhores dirão."[5]Na referida edição, lê-se na p. 3, sob a intitulação da rubrica "Livros Novos" e o título "O Castelo de Sombras por Judith Teixeira. Transcrevem-se alguns poemas.":"Judith Teixeira que, ha tempos, conseguiu irritar a atmosfera literaria de momento com a publicação dum livro estranho Decadencia - responde agora aos aflictivos da moral com os poemas de Castelo de Sombras - um castelo que a sua dôr ergueu e de cujas seteiras viu o mundo aflictivamente.Dele transcrevemos hoje alguns dos seus melhores poemas, cheios de sinceridade e de misterioso sentido..."[6] Cito a rápida informação fornecida pelo Dicionário Cronológico de Autores Portugueses coordenado por Eugénio Lisboa, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, pp. 207-208, que o não denega: "MANSO, Joaquim Martins (N. Cardigos, 1878 - m. Lisboa, 1956) - Jornalista e escritor, fez preparatórios de Teologia em Portalegre, seguindo para Coimbra, onde se ordenou e continuou o estudo da Teologia, que abandonou para se formar em Direito. Advogou em Lisboa. Na Capital mantinha uma secção, "Poeira da Arcada". Foi governador civil de Vila Real, depois da República, sendo também secretário do Dr. Bernardino Machado quando este era ministro dos Estrangeiros. Foi redactor principal de A Pátria , dirigida por Nuno Simões. Em 1921 lançava, com outros jornalistas, o Diário de Lisboa , que dirigiu até morrer, escrevendo, durante largos anos, e quase exclusivamente, não só o editorial, num peculiar estilo menos jornalístico do que literário e conceituoso, como também os "ecos" ou comentários da primeira página. Os últimos livros que publicou, em edições primorosas, ostentam desenhos de Almada Negreiros. João Gaspar Simões, que no Diário de Lisboa “batalhou” três anos (antes de 1942) “pela dignificação da crítica portuguesa”, dedicou-lhe o volume Crítica I , “em reconhecimento do apoio que nunca (lhe) negou”."[7] Matei Calinescu, As Cinco Faces da Modernidade. Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch, Pós-Modernismo , Lisboa, Vega, 1999, p. 56.[8] Cf. Cláudia Pazos Alonso, Imagens do Eu na Poesia de Florbela Espanca , Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1997, p. 46.[9] Cf. Armando da Silva Carvalho, "Excerpto duma conferencia acêrca da Literatura Moderna ", in Diário de Lisboa de 15 de Agosto de 1927 (nº 1947).[10] Loc. cit. , p. 766. Eximo-me à transcrição da recensão, que ocorrerá à frente, na alínea 1.3. "A recepção crítico-literária".

Friday, November 10, 2006

O eu assertivo de Judith Teixeira



Sabe-se que o emancipalismo feminino, da sua génese até à quase concretização nos nossos dias, é devedor, sem sombra de dúvida, do crescendo económico ulterior à Revolução Industrial, da alteração normativa imposta à transferência dos legados patrimoniais familiares, do acesso da mulher ao sistema educativo, da reivindicação feminil que cada vez mais se instalou e do declínio acentuado da vigência do normativismo religioso. Mas isto já foi mais ou menos dito por um Georges Duby e por uma Michelle Perrot.No caso português, parece-me indesmentível que a agitação provocada por Judith Teixeira na década de vinte - até no seu jeito artístico, de penteado à "garçonne", para gerar um imaginário de figura feminina de acordo com o vigente modelo universal à Louise Brooks -, trouxe um importante contributo libertatário para a geração de mulheres que se lhe seguiu. No entanto, e ainda bem, Judith Teixeira consegue uma identidade própria não pelo grito sufragista de grande voga, nomeadamente no período subsequente à implantação da República, mas sim pela ostentação de uma vida espiritual e intelectual que ela sumptuariamente subscreve pela presença obsidente do seu forte e assertivo "Eu". Esse esteticismo e essa força afirmativa estão também presentes na inusual apresentação, em primícias literárias, de obras suas sob a chancela gráfica da Imprensa Libânio da Silva, que, segundo José Augusto-França, "dispunha de excelentes oficinas".

Saturday, October 07, 2006

para um perfil identitário de Judith Teixeira


"Sim, não sabes. Pois é a única coisa que um caloiro pode sa-
ber: o que é." (Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva )


"Dá-me alegria...
Incendeia meu sangue arrefecido!
E depois meu amor...
Depois... deixa-me sonhar..."
(Judith Teixeira )


Como há muito se sabe, definir ou confinar é estabelecer uma fronteira. Logo, essa tentativa, ensaio que muitas das vezes é mero exercício do intelecto, visa limitar, para melhor perceber. Restringir é, então, um método, um caminho constritivo e penoso com uma finalidade elucidativa e amplificadora.
Para a construção da identidade individual de Judith Teixeira, interessa delimitar conceitos, avançar cautelosamente e logo vogar nesse mar vasto que nos conduz sempre a porto desconhecido, uma vez que entendo a essência dum trabalho deste teor, de pendor ensaístico, como uma aventura que acaba para logo começar, texto em aberto à espera de complemento ou de elisão. Aliás, vai nesse sentido o conjunto de asserções que Sílvio Lima aduz no seu magnífico e sempre estimulante Ensaio sobre a essência do ensaio, que, de seguida, transcrevo: "Quem faz ensaios, embarca numa aventura em pleno mar alto; depois de muita tormenta sobre as ondas, lança ferro aqui, mas para logo desaparelhar no dia imediato e seguir novo rumo. Até quando e até onde? Até... sempre, ou até... nunca; até ao infinito!"[1]
E depois, para que o carácter movediço se instale de vez, há que relembrar aqueles versos finais da primeira estrofe do poema "Adeus" que instauram a certeza de estarmos perante um sujeito poético que, eco do plano da excepcionalidade em que se coloca, afirma um forte e assertivo eu: "... o que eu não sei / é ser banal!"[2] Mas, antes desse aprofundamento da identidade individual judithiana, acertemos alguns conceitos e ideias. Afinal, como definir identidade, sabendo-se, como se sabe, que o seu par operativo idêntico, sendo um dos conceitos fundamentais do pensamento, é "impossible par conséquent à définir"[3] ? Assim, é idêntico o que é único e singular, não obstante as plurímodas formas de nomeação. Logo, é idêntico o que é constante e o que permanece igual a si mesmo no abismo do transcurso histórico e do devir temporal. E esta limitação do idêntico, implícito irrefragável da definição, arrasta consigo, neste esforço de captação da unidade primigénia, palavras que, sendo sinónimas do objecto de circunscrição, não preenchem capazmente a sua essência, até porque, quando dizemos que é idêntico o que é na realidade um , temos a noção de não existirem verdadeiros sinónimos, caindo logo no domínio da tautologia, uma vez que, ao definirmos, dizemos " x é y", utilizando o verbo copulativo ser, o que supõe, desde logo, uma identidade, e usamos também o termo um , que não pode deixar de ser um sinónimo do objecto a definir, não obstante as constrições assinaladas [4]. Assim, o idêntico permite resolver o problema identitário que se coloca, ao passo que o diferente é ainda algo a deslindar. No entanto, essa oposição conceptual clara encerra uma implicação clara, o que permite definir, sendo o par operativo a própria definição, o que, de algum modo, não anda muito longe do que Roland Barthes defende em Mitologias, quando se refere à identidade dos intelectuais segundo Poujade: "Poujade diz-nos apenas que só entrarão no seu Olimpo “os intelectuais dignos desse nome”. Eis-nos reduzidos, uma vez mais, a uma dessas famosas definições pela identidade (A=A), que aqui mesmo chamei, repetidas vezes, tautologias - isto é, ao nada.”[5]
Nesta reflexão sobre o idêntico , interessa ainda fixar-se que, seja na vertente psicologista, seja em análise metafísica, não existem seres idênticos entre si, havendo, isso sim, no próprio ser individual, uma constância identitária consigo mesmo, até porque o seu passado se reflecte no presente e quaisquer modificações diacrónicas são solidariamente diluídas nesse fluir da tradição, constituindo-se, in fieri , num só ser, ainda que múltiplo e heterogéneo. Dessa heterogeneidade, fala-nos, por exemplo, um inspirado Raul Brandão nas inesquecíveis páginas do seu Húmus: "Há um ser que ocupa o meu ser e me domina quer eu queira ou não queira."[6]
A característica do que é idêntico, por seu turno, denomina-se identidade, podendo tal traço identitário advir da notação numérica ou matemática, pessoal ou individual, jurídica, moral, qualitativa ou específica, encerrando-se aqui este rol abaixo do postulado de S. Tomás de Aquino das vinte e sete espécies de identidade. Resulta ainda evidente, nesta súmula teórica, que, muitas das vezes, aquilo que se reveste de idêntico, em análise mais minudente, reganha foros de semelhante . Aliás, não obstante a dispersão do início do parágrafo, diga-se que dificilmente poderemos aceitar, salvo no plano ideal, a existência de dois objectos com distinção espácio-temporal e iguais qualidades. Este asserto vai de encontro ao postulado de Wittgenstein que prescreve que "dizer de duas coisas que elas são idênticas, é sem sentido, e dizer de uma coisa que ela é idêntica a si própria, não diz absolutamente nada." [7] Contudo, o usus pragmático das palavras idêntico e identidade relativamente a duas realidades ou objectos aponta para uma igualdade que, quase nunca se verificando, se subsume aqui à confluência de efeitos e usos. E será nessa intersecção funcional que encontraremos a mesmidade, decalque ostensivo da mêmeté do voltairiano Dictionnaire philosophique .
O princípio da identidade recobre comummente a asserção: "O que é, é e o que não é, não é." Tal postulado arrasta a necessidade da constância terminológica, da intemporalidade e da imutabilidade como quesito ideal, pois, como facilmente se compreenderá, o que é verdadeiro ou falso hoje, sê-lo-á sempre. Daí a perenidade da verdade e a dificuldade de a fixar. De facto, em termos identitários, é tarefa árdua a construção do lugar da pessoa em processo de identificação, com a premência da individualização dos seus modos de conduta e de pensamento ou com a necessidade do enriquecimento egótico através de vinculações emotivas diferenciadoras.
Condicionada pela historicidade, a identidade é algo de dinâmico e não-definitivo, com espaço para um constante construir-se, havendo, nesse processo de identificação , uma tensão dialéctica repartida entre oposições, contestações, diferenças e derrogações, o que, de facto, não obstante a aparente infirmação presente nesse fogo ameaçador, mais assinala, tornando nítida, uma identidade cultural. E, acrescente-se, nesse gume interpretativo perpassa uma hermenêutica que nos conduz à redescoberta do real e a uma mais perfeita autognose.
Mas, retomando a ideia de identidade cultural a que atrás aludi, convém que fixemos uma "definição" de cultura, que é um conceito que sempre refoge a confinações e delimitações, optando aqui eu por seguir a proposição simplista e conglobadora de António José Saraiva que defende que cultura "opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito."[8] E assim a identidade cultural tem que ver com a individualização peculiar desse acrescentamento, tendo-se por certo que uma relação identitária deste teor assume as dimensões existencial ( que se prende com o continuum da redefinição de uma identidade), simbólica ( tem que ver com os símbolos perenes que provocam uma identificação) e institucional (com a instituída identidade histórica e com a instituinte doxa comemorativa).
Quase no fim deste primeiro passo, não me parece destituído de nexo acrescentar que de uma identidade individual releva sempre uma identidade nacional, seja por vinculação a uma Heimat, seja por repulsão de desenraizamento, seja, por último, por incapacidade desvinculativa de cinéreas e peregrinas raízes que, não pesando muito, são sempre alimento do sopro individual que dirige o percurso in fieri. Logo, na construção identitária do indivíduo está compresente toda a problemática da identificação nacional resultante da intersecção da sua apropriação cognitiva, da diversa assunção social, dos factores objectivos que a recobrem e do evolucionismo manifestativo de que ela é exemplo.
Seja este entrecho teórico-prático, pois, um contributo para a compreensão da identidade (e dos seus abismos) de uma poetisa que, ao arrepio da época e do vulgar modo feminino literário de prevalência da vertente sentimental do neo-romantismo lusitanista, nos faz agora agitar o estranho silêncio que lhe sucedeu. E aqui radica o espanto. É que Judith Teixeira, detentora de um vincado e assertivo eu, e perdoe-se aqui a glosa kantiana, era e é uma mulher-poeta saída da menoridade pela força do entendimento. E tal superioridade (que não genialidade), presente até na sua multímoda acção literária, inscreve-se naquele reconhecimento identitário, no gume do dissídio individual, que recolhemos nos versos finais do soneto "Quem és?": “Eu sou a fria dôr do Intendimento,/ á luz fria da Verdade, a iluminar-te!” [9]. Disse a voz dos homens e não dos deuses pela boca da mulher cujo perfil identitário ainda mal se desvela nesta porta que de novo abro...

[1] Sílvio Lima, Ensaio sobre a essência do ensaio, 2º edição. Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1964, p. 116.
[2] Judith Teixeira, Núa. Poemas de Bysâncio, Lisboa, Editores: J. Rodrigues & C.a, 1926, p. 83. Na edição preparada por Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, ver Judith Teixeira, Poemas, Lisboa, &etc, 1996, p. 178.
[3] Cf. André Lalande, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, 15 e édition, Paris, Presses Universitaires de France, 1985, p. 454.
[4] Cf. Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas, 2a edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 46-47: "Na linguagem corrente sucede muito frequentemente que a mesma palavra designa de modo e maneira diferentes - e portanto que pertence a símbolos diferentes - ou sucede que, duas palavras que designam de modos e maneiras diferentes, são aparentemente empregues na proposição do mesmo modo e maneira. Assim a palavra “é” surge como cópula, como sinal de igualdade e como expressão de existência; “existir” como verbo intransitivo, como “ir”; “idêntico” como adjectivo; falamos de alguma coisa , mas também de que acontece alguma coisa . (Na proposição: “Verde é verde” - em que a primeira palavra é um nome próprio, a última um adjectivo - estas palavras não têm apenas uma denotação diferente, mas são símbolos distintos. )". (§ 3.323)
[5] Roland Barthes, Mitologias, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, p. 205.
[6] Raul Brandão, Obras Completas de Raul Brandão-VI: Húmus, Lisboa, Círculo de Leitores, 1991, p. 55.
[7] Ludwig Wittgenstein, op. cit. , p. 107 (§ 5.5303).
[8] António José Saraiva, Cultura, Lisboa, Difusão Cultural, 1993, p. 11.
[9] Judith Teixeira, Castelo de Sombras, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923, p. 38..

Saturday, September 23, 2006

Judith e a tragédia modernista

Fotografia de David Sanger (Alemanha, Wiesbaden, "Figura de Tragédia" - Monumento a Schiller, Teatro Hesse)



Intencionalmente comunicativa, a fábula é narração e é intriga, correndo célere para o recorte moralizador. Tal segmento moral, de nome epimítio e quase sempre a última frase, sintetiza o ensinamento fabular. Assim esta coluna de anos, procurando mostrar.
Para ser mestre modernista, foi Almada a Madrid e teve de existir a regiana “presença”. Nesse mesmo ano de 1927, abandona Judith Teixeira e ruma a Espanha, mal olhando as provas de “Satânia”. Em breve, imersa na década seguinte, sobre si cai o silêncio. Desconhecido como poeta na década de 20, Luís de Montalvor é a alma da editora Ática e morrerá tragicamente nas águas do Tejo, em 1947. No início da década de 20, morre em Rilhafoles Ângelo de Lima, poeta enigmaticamente lúcido. Santa Rita Pintor e Sousa Cardoso morrem ignorados, participando António Ferro na humilhação de Fernando Pessoa, ao distinguir Vasco Reis e ao preterir a “Mensagem”. Breve, o fígado cede. Ao tempo, Raul Real, o da “literatura de Sodoma”, apodrece nas tabernas do Bairro Alto. Botto, defendido por Leal e por Pessoa, extravasa a decência e abandona o país, morrendo, estranhamente ou não, em 1959, como Judith Teixeira, morta desde há muito para a literatura. Em 1916, Mário de Sá-Carneiro, não conseguindo esmagar-se debaixo das rodas do metro, na estação do Pigalle, suicida-se com estricnina num hotel parisiense. Alexandre d’ Aragão, mais eficaz, encosta o pescoço aos “rails” de comboio no Choupal e morre trucidado, em 1930. Mário de Saa, que viu recentemente publicada a sua obra poética pela IN-CM, nenhum livro de poesia publica durante o seu período de vida. Em 1949, Carlos Queiroz sucumbe, subitamente, em Paris. Quase ao mesmo tempo e no mesmo ano, em Castelo de Vide, morre Francisco Bugalho, a quem há pouco falecera o prometedor poeta e filho Cristóvão de Pavia.
O esquiliano Prometeu ensina a que esgotemos o destino que nos coube. Até final, há nas gerações modernistas uma dor que ninguém apaga.

Friday, September 22, 2006

o poemeto das sombras



O POEMETO DAS SOMBRAS


Ruge lá fora a ventania
e as árvores vergando, desfolhadas,
vão gemendo, como almas na agonia,
contorcidas, desvairadas.

À meia-noite,
a voz do sino, pesada e densa,
passa estridulando,
como se uma boca cavernosa, imensa,
nos predissesse negramente, malsinando!...

Há lares em festa -
e fome pelos caminhos
da desgraça.
E a minha amargura
vai subindo
na voragem funesta
de clamor que passa!

Meu Deus!
Por que é que os inocentes, pobrezinhos,
não têm pão?
Por que é que nesta noite em que nasceu Jesus
o Céu, não se sorri, cheio de luz?

Quebram-se soluços na rajada...
Exalo-me em tédio! vibra o meu tormento -
eu trago revestida a alma de saudades
nem eu já sei há quanto tempo!...

Sobre a seda vermelha que me envolve.
a luz vai entornando
vagas tonalidades - violetas...
e lá fora batalham peito a peito,
revolvendo as trevas ululando,
longos fantasmas
de negras silhuetas!

Judith Teixeira

Thursday, September 21, 2006

Judith Teixeira e o Modernismo

"Somos o assunto do dia em Lisboa."(Fernando Pessoa a Cortes-Rodrigues)
A natureza humana mudou. O assunto do dia em Lisboa era reconhecer, de algum modo, que a natureza humana mudara e se desadaptara. Uma Virgínia Woolf, em frases que devieram célebres, sintetizou a emergência do Modernismo do seguinte modo: "On or about December 1910 human nature changed... All human retlations shifted - those between masters and servants, husbands and wives, parents and children. And when human relations change there is at the same time a change in religion, conduct, plotics, and literature."[1] Tal premência do lado de dentro do homem, que tem que ver com agitação, trabalho e visibilidade, e até por aí os lugares modernistas se intersectam com os modos decadentistas, no sentido até da tal sutura sem rompimento, explica-a exemplarmente um Fernando Pessoa, quando diagnosticou, num dos seus textos íntimos, existir em cada homem moderno um neuratésnico que tem de trabalhar. O asserto pessoano em epígrafe é corroborado, nas suas implicações, por um Américo António Lindeza Diogo, por exemplo, que, acentuando o cosmopolitismo do Modernismo, diz que ele é, antes de tudo, "um movimento artístico e literário cosmopolita, com a sua série literária de grandes e pequenas capitais: Paris, Berlim, Viena, Praga, Londres, Dublin, Lisboa."[2] E assim a cidade ganha óbvio interesse, porque, afinal, ela é cultura e o Modernismo que por todo o lado vinga é uma arte tendencialmente urbana, próxima de uma sociedade tecnológica e desenvolvida.[3]Estranheza, alienação e crise de valores são classificações que facilmente colam aos nossos modernistas, que viviam a poesia como um mito real. Deste modo, o Modernismo é "uma arte da crise", que, como o defende Osvaldo Silvestre, responde, no plano psicossocial, "ao imaginário tecno-científico e urbano da modernidade com uma mimese críptica, ou hipocrática, praticando para tal uma ruína da forma e consequente celebração do valor epifânico do fragmento"[4], não sendo alheios a esta panorâmica agónica traços como o esboroar do campo teológico, com o conexo engurgitamento das esferas racionais, a derrota do sujeito transcendental face à dominação nietzschiana, freudiana e darwiniana, a desolação bélica provocada pela Grande Guerra, ou o primado do cosmopolitismo sobre o tradicionalismo, vividos em conjunto ou em parte, por um sujeito que é peça funcional de um mundo frio ou, ao contrário, por um ser multifronte, estrangeiro dentro de si, olhando-se descentrado e ironicamente plural.De acordo com o código técnico-compositivo de predominância modernista, a colagem será um estratagema funcional, moderada, na abertura e vertente difusa, pelas repetições e pela disseminação de narrativas mítico-simbólicas de encaixe tectónico, a que um Eliot chamava "método mítico", gerando-se assim, num misto de ironia e de racionalidade, uma corrente de sentido.O modernismo português é animado pelo inconformismo assinalado, sendo uma "tomada de consciência cultural de uma geração desejosa de renovar a literatura e as artes portuguesas, tomando como modelo o grande movimento do vanguardismo europeu iniciado com o Manifesto futurista de Marinetti, de 1909."[5] Abraçando a modernidade activa, e um excelente exemplo dessa agilidade é o polimorfo Almada Negreiros, o Modernismo português acentua o abandono dos artefactos do passado em detrimento do novismo que o movimento artístico dialecticamente sulcava na ágora lisboeta.E foi em Lisboa, a partir de 1913, mas também em Goa, nesse mesmo ano, que se veio a formar este movimento, não sendo despiciendo, neste particular, relembrar as informações inovadoras que a lusitanista ítalo-brasileira Sandra Bagno fornece ao defender, com provas irrefutáveis, que o terminus a quo das relações da modernidade literária portuguesa com o futurismo de Marinetti deve ser reposicionado em Julho de 1913[6], por via da publicação, nessa data, da Revista da Índia , que continha, no editorial programático de Paulino Dias[7], uma nítida pregnância de influência marinettiana com o fito expresso da deflagração do renascimento cultural indiano. Sem grande discussão, é certo que, sendo ao tempo a Índia uma possessão portuguesa, a precedência goesa é um facto. No entanto, o movimento modernista lisboeta - que se começa a esboçar no mesmo ano de 1913 e adquire visibilidade em finais de Março ou em Abril de 1915, com a publicação da Orpheu , - parecia ter uma outra consistência grupal, como muito bem o faz notar Luís de Montalvor nesse número nascente: "ORPHEU, necessita de vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes der orgulho, temperamento e esplendor - mas pelo contrario se unam em selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e inferiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes falta, - do que resulta um procura esthética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos..."[8].O Modernismo português vivia nessa e dessa inquietação, sedento de novidade e de actualização, de demolição e de reconstrução, de inovação técnica versilibrista e de diferença ideológica, apurando-se nas liberdades vocabulares e na tergiversação sintáctica, assumindo desde logo uma estratégia de choque e provocação. "Orpheu abandonou decisivamente o idioma dos avós e inventou, para nós, a poesia moderna que ainda hoje somos"[9], diz um Eugénio Lisboa. Judith Teixeira andou por lá, mulher consoladora em território de homens feridos pelo mal orfeico da dor da perda e pela pose da arrogância e da superioridade. Sem consciência disso, no vezo oxigenante da despertação das almas adormecidas, quase ninguém viu aquela mulher fulgurante de genialidade assertiva, que partilhou conversas e gostos e amigos e escândalos e dirigiu a cosmopolita revista Europa de eco orfaico. Mas tudo isso é perfeitamente normal: também poucos se aperceberam das consequências e do valor do alarme de Orpheu. Estranho, muito estranho, é o silêncio dela, Judith, e dos profissionais da literatura, que lhe foram perdendo o rasto e cavando o por-dizer.Pessoa chegou ao público, em 1927, por obra da revista Presença. Almada, nesse mesmo ano, sai para Espanha, afirmando emblematicamente que exilada estivera uma geração dentro da própria cultura. Também Judith Teixeira se ausentou do país, em 1927, tudo indica que para Espanha, assim inscrevendo, no sopro da errância, um fim que estava perto no destino da memória próxima e uma ligação clara ao movimento modernista.Quis o destino que o tempo, "esse grande escultor", viesse alterando, laboriosamente, o injusto esquecimento. Este é mais um passo.[1] Virginia Woolf, "Mr Bennet and Mrs Brown", in Collected Essays , vol. I, London, Chatto & Windus, p. 320.[2] Américo António Lindeza Diogo, Modernismo, readymade. Notícias das trincheiras, Braga, Cadernos do Povo, 1997, p. 43.[3] Cf. Malcolm Bradbury e Janes McFarlane, Modernism. A Guide to European Literature (1890-1930), London, Penguin Books, 1991, nomeadamente o capítulo "The cities of Modernism" (pp. 96-104), assinado por Bradbury.[4] Osvaldo Silvestre, "Modernismo em Portugal", in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, col. 842.[5] Sílvio Castro (dir.), História da Literatura Brasileira, vol. 3, Lisboa, Alfa, 2000, pp. 84-85 (Cap. 41, "Modernismo brasileiro e Modernismo português", do mesmo Sílvio Castro).[6] Cf. Sandra Bagno, "Il futurismo a Goa e la 'Revista da Índia' ", in Rosa dos Ventos - Atti del convegno 'Trenta anni di culture di lingua portoghese a Padova e a Venezia' , Pádua, Univ. di Padova, 1994, pp. 89-102; id., "O futurismo libertário na Índia Portuguesa", in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias , Lisboa, 26 de Abril de 1995, pp. 28-29; Sílvio Castro, op. cit., pp. 86-87.[7] Sobre Paulino Dias, veja-se a informação contida em Eugénio Lisboa (coord.), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, pp. 149-150:" DIAS, Paulino (N. Santa Cruz, Goa, 1874 - m. Nova Goa, 1919). Poeta iconoclasta, pintor, músico e cientista, foi professor no Liceu Central de Nova Goa. Diplomado em Medicina, dedicou-se sobretudo à aplicação industrial das ciências. Usou o pseudónimo hindu de Pitri Das (Escravo do Amor).De origem indiana, este autor considerava-se como um dos descendentes dos Drávidas, o que muito contribuiu para a sua ligação com a cultura indiana e para o profundo conhecimento que possuía da sua literatura. São exemplos disso o poema Indra, o poema dramatizado Nirvana e a peça Os Párias. Mas não descurou, na sua curta vida, a literatura europeia, que muito o influenciou, sobretudo os movimentos fin-de-siècle, decadentismo e realismo. O seu livro A Lira da Ciência, 1896, é aquela em que mais se reflecte a influência de autores portugueses, especialmente de Herculano e Junqueiro. A sua obra carece de unidade artística e filosófica, pois que se encontra dispersa numa estética científica aliada a um idealismo regenerador e reformista, contra a injustiça do sistema das castas. Deixou volumes inéditos em francês, inglês e português. Entre 1909 e 1910 dirigiu o mensário ilustrado Revista Moderna. Pertenceu ao grande movimento indianista que, após a proclamação da República, viria a conquistar um lugar ao sol na burocracia e nas profissões intelectuais. Colaborou na Revista da Índia e em A Luz do Oriente.Obras principais: Vasco da Gama, poemeto, 1898; Visnhulal, 1919; No País de Súria, 1935 (edição póstuma); A Deusa do Bronze ." O carácter polimórfico desta figura cultural está ligada, por certo, ao espírito moderno, quanto mais não fosse por esse desdobramento funcional e por esse modo marinettiano de afirmação em 1913, que demonstrava, entre outras coisas, ser Paulino Dias um homem atento às vanguardas literárias.[8] Luís de Montalvor, "Introducção", in Orpheu. Revista Trimestral de Literatura., Ano I, nº 1 (Janeiro-Fevereiro-Março), Lisboa, 1915, pp. 5-6. Citado a partir da edição facsimilada da lisboeta Contexto, 2ª edição, 1994.[9] Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa: do 'Orpheu' ao Neo-Realismo, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa-Ministério da Educação e Ciência, 1980, p. 14.

Wednesday, September 20, 2006

o donjuanismo feminino: Régio, Judith e Florbela



José Régio, em paralelo não totalmente desabonatório para Judith Teixeira, defende, no célebre manifesto presencista “Literatura Viva” (10 de Março de 1927), que “todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto”. Alguma crítica tem visto no asserto (e, quem sabe, se a Poetisa na época!) uma tirada fatal. Admito a possibilidade. Lembro, no entanto, que o negativismo que Régio entrevia não mais era do que emblemático: e foram emblemas menos positivos, de acordo com Régio, Sá de Miranda, António Ferreira, Fidelino de Figueiredo, Junqueiro e Judith. Não estudando ou mais citando Judith Teixeira, Régio é o principal responsável pelo impossível esquecimento da autora de Decadência. Régio, uma vez mais, estava lá, não dizendo talvez a espantosa modernidade de Judith Teixeira, o que não deixa de ser espantoso, tratando-se de Régio.
Florbela Espanca (1894-1930), também vítima do descaso epocal, que não de Judith Teixeira, que a publicou e, como quer Cláudia Pazos Alonso, a influenciou, consegue um impulso importante de José Régio no sentido da visibilidade do seu inovador e predestinado universo poético, assente, no dizer regiano, no "sempre querer mais." De facto, o criador de Poemas de Deus e do Diabo, não obstante a chegada pós-seniana, ao observar que a obra de Florbela deveria ser analisada sob o filtro do donjuanismo feminino que lhe genitaliza toda a obra, criou mais um lugar clássico na nossa literatura.
Em 1923, é publicado o Livro de Soror Saudade, uma colecção de sonetos que, assim, cruza meteoricamente essa década efervescente, à espera então da consagração que o tempo acabou por decidir. Régio, à frente no tempo, estava lá, anunciando. De outro modo esteve com Judith Teixeira… E, no entanto, a regiana palavra promoveu Judith, trazendo-a à memória, à frente no tempo…

Sunday, September 10, 2006

na década de 20: Judith e Tsvetáeva


São multívocos os lindes da ciência do belo e existem jóias lapidadas que parecem moldadas por uma força de influência, que diminui as fronteiras e os desencontros geográficos. As melhores palavras são as dos poetas, porque na poesia dominam ainda o império da ética e a frincha de esperança de que o homem sempre carece.
Junho de 1922 é uma época emblemática para Judith Teixeira e Tsvetáeva: utilizando processos retórico-poéticos diferenciados, ambas as escritoras manifestam nesse mês e nos anos próximos um importante fulgor criativo. Teixeira detém uma sintaxe mais linear e directa, enquanto Tsvetáeva ajoelha à alegria barroca, enfrentando ambas incompreensíveis atritos e perseguições, que não levaram nunca ao servilismo e à sujeição, antes fazendo redobrar os textos de ousadias expressionais e construtivas.
Em Junho de 1922, escreve Judith Teixeira o “escandaloso” poema “A Minha Amante”, criação poetológica sob o influxo de epígrafe homo-autoral, que contém alusões a paraísos artificiais, deflagrando depois, no corpo textual, toda uma ambiência sáfica (“Não entendem dos meus amores contigo”) que muitas consciências parece ter perturbado na década de 20. Em simultâneo, a escritora moscovita, afastada da pátria, constrói um intrincado e fascinante poema que não despreza também os abismos do amor (“Terreno amor, / Fado cruel. / Mãos: luz e sal. / Boca: sangue e breu.”).
Enfrentando totalitarismos e pressões sociais, as duas mulheres cedo souberam que ser-se sujeito é viver-se no “êxtase da procriação”. Assim as palavras finais do poema judithiano, cavando o mistério da poesia. Assim o eco e as ruínas produtivas de il miglior fabro… Como, aliás, se vê no tsvetáeviano poema que apresento em passo final, com tradução de Augusto de Campos:
NEREIDA
Nereida! Onda!
Ela. Eu. Nós dois.
Nada além de
Onda ou náiade.

Teu nome, tumba,
Reconheço, onde for,
Na fé - o altar, no altar - a cruz.
O terceiro, no amor.

Saturday, July 29, 2006

Judith Teixeira e Gustav Klimt



“Decadência”, esse livro debutante de Judith Teixeira, se titularmente parece preso ao epigonismo decadentista – e lembro que, como o diz Calinescu, o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despicienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, com a nota de ineditismo erótico e de ousadia expressional.
De facto, tal estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt (e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909)) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
A vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”.
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transformadas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” ( e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, en- sanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho, já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários. Mas não de todos...

Tuesday, July 25, 2006

ainda sobre a moral

Que o corpo vos seja limpo, caros leitores. E que a centelha de fogo, que brilha sobre o céu da cidade, ilumine as mentes vãs, esvaziadas, sabe-se, do respeito pelo outro que se assume. Eu não quero nada mais suave. Antes desejo o tempo da limpidez mental, dieta impoluta adscrita por ventos de Harvard e pela filosofia pragmática que decorre da vida quotidiana.
Este é o meu corpo exposto na inscrição do texto. Aquele amigo, que outro amigo ama ou deseja, é também amigo meu na diferença igual que não vejo. Que me importa a diferença que cada dia se renova, se eu sou eu e o outro é o outro no respeito que somos. Cruzo a vida sem fobia com a amiga que abraço porque assim sou. E se não, por que não os mesmos amigos e amigas, sem tique ou etiqueta?
Marcho contra a hipocrisia e a fobia que fielmente crêem no caminho solitário do “bom amante”, como se o corpo fosse dominável pelos fungos das gavetas apodrecidas! Nada pode ninguém, se o corpo se levanta e escolhe o caminho.
Um fulgurante António Sérgio, em ensaio parisiense datado de 1928, reconhece que o amor “é mais forte do que nós supomos”, devendo sentir-se “sob a forma luminosa da inteligência, ao calor fulgente da compreensão.” Eis, pois, um preceito que não deve ser esquecido, nomeadamente por aqueles em exercício cultural de investidura pública. Fora do espaço isegórico da “solidariedade vivida” (Urbano Tavares Rodrigues), já só resta um negro terreiro de impreparação e de incompetência…
A perfídia de quaisquer actos censórios desinscreve e deseduca. Inscreve e educa quem vai lembrando, como uma lição contínua, o elegante “Preface” de Oscar Wilde a “The Picture of Dorian Gray” de que extraio o excerto que cito: “Those who find ugly meanings in beautiful things are corrupt without being charming. This is a fault.”
A cruzada moralista lisbonense que inundou a década de 20 do século passado lançou para o fogo inquisitorial autores como António Botto, Judith Teixeira ou Raul Leal, apodados, em conjunto, de autores de “literatura dissolvente”. Em defesa da liberdade criativa insurgiu-se, por exemplo, um Fernando Pessoa, que litigou brilhantemente com o persistente Álvaro Maia, assanhado polemista e guardião da “boa moral”.
Arte do seu tempo contra a tradição do passado são, por exemplo, “O Banhista” de Cézanne (c. 1885), a impressão em gelatina e sais de prata das fotografias que captam virtualmente o movimento do corpo de Marey (?, c. 1890-1900), “A Semente de Areoi” (1892) de Gauguin, a “Madonna” (1895-1902) de Munch, a “Rapariga com Cabelo Negro” (1911) de Schiele, “Fränzi Reclinada” (1910) de Heckel, “Banhistas que atiram Juncos” (1909-1910) de Kirchner, “A Dança” (1909) de Matisse, “O Assassino em Perigo” (1926) de Magritte, “Nu na Casa de Banho” (1932) de Bonnard, “Pin-up” (1961) de Hamilton ou “Romance Familiar” (1993) de Charles Ray. E, no entanto, é evidente que a fulgurância destas obras dimana da nudez do corpo de homens e de mulheres e não é lícito encarar-se a sua dilucidação com o cadinho da suavidade. Nem penso que alguém responsável o tenha feito.
Em cada cidade há sempre um Álvaro Maia à espreita. Com estrondo, as primeiras palavras já dizem tudo. Em Viseu, se a pergunta era mais do que retórica, afirmo que as pessoas reagem com indignação a actos censórios e diminuidores das liberdades artísticas. Um museu, até etimologicamente, deve ser um lugar interactivo de multímodas artes. De liberdade, de direito à palavra, de direito à diferença.
Assim não sendo, há um caminho que quem com poder deve traçar. Passam quase cem anos sobre a vergonha da perseguição à chamada “literatura de Sodoma”. Nesse abismo persecutório, uma mulher de Viseu, a poetisa Judith Teixeira, sofreu digna e superiormente os golpes da intolerância.
Não faltando a coragem, corte-se o mal e a raiz. Espero, entretanto, não pensar por muito mais tempo naquele poema de uma mulher afegã, que Sayd Bahodine Majrouh resgatou do silêncio, e que aplico à circunstância: “Tenho na mão uma flor que murcha / Não sei a quem a dar nesta terra estrangeira”.




Friday, July 21, 2006

Judith Teixeira: uma poetisa de Viseu no Modernismo português

Que ninguém fale contra este estranho e esquecido canto. Ritmo selvagem que é, vão estas palavras do fragor do fogo embater no impossível esquecimento. Afinal, que país somos e que literatura queremos, se assim ocultamos uma Judith Teixeira, mulher modernista, misto de Florbela Espanca e Irene Lisboa, com laivos esteticistas à Mário de Sá-Carneiro? Quantas mulheres assim, nas páginas de história literária, que a tornem mesmo deslembrada dos seus mais próximos e dos burocratas da cultura?
Com o pretexto dos oitenta anos que passam sobre o início da colaboração de Judith Teixeira (1880-1959) com a revista Contemporânea, é o momento de afirmar o injusto esquecimento a que tem estado votada a singularíssima mulher-poeta viseense. Afinal, trata-se da única mulher no modernismo português, com ligações documentáveis ao ultraísmo espanhol.
Sinceramente penso que Judith Teixeira - a mulher-cometa que, devedora do decadentismo epigonal e da vertigem modernista cruzou a década de vinte - merece um lugar de razoável visibilidade na nossa literatura, não obstante o estranhíssimo silêncio com que tem sido contemplada pela grande maioria dos historiadores e estudiosos da "coisa literária".
A actividade poética de Judith Teixeira, e não cessam aí os seus méritos, encerra a revelação, a sabedoria e, obviamente, o amor, características que, aliás, conduzem ao conhecimento do ser original. Dessa voragem autognósica, que é também iluminação do ser e poetização subjectiva do ser, destaca-se uma original e interactiva apropriação dos kierkegaardianos estádios imediatos de Eros , podendo um mesmo poema apresentar três estádios que vão da contemplação melancólica à consumação desviante. E o que ressuma desse vórtice poético é sempre, com o acúmulo de vozes autoritárias que cada vez mais despontam, a certeza de se estar perante uma voz feminina originalmente viva.
Judith Teixeira é uma voz lírica que é um dos grandes poetas do amor do nosso século. Marginalizada por muitos, ela cumpriu uma expiação que só os eleitos ousam sofrer e superar. Mas, afinal, não é da margem que se vê melhor? Não procura o Amor, como codiciosamente o notou Kierkegaard , um recanto isolado?
É o momento dos dias limpos para uma voz sonegada e esquecida. Judith Teixeira, lenta e seguramente, vai emergindo pela força de múltiplas vozes que têm vindo a privar com o fogo das palavras descomprometidas.
Muito tempo passou sobre aquele grito valorativo e contristado de Aquilino Ribeiro contra a intolerância. Judith, sujeito sem sujeição, que muito antes "dos nossos dias", como diria um Eugénio de Andrade, se deu ao corpo e, por via disso, à voz do silêncio.
Este é, por isso, mais um passo contra a obscuridade que reputo da mais vincada importância. Um passo ao lado de outros passos, à espera de novas incisões.
Os de fora da literatura dirão que este é um excurso de arqueologia literária. Afirmando e infirmando, sem perder de vista a munificiência do labor intelectual que sempre comporta dissentimentos ecdóticos e hermenêuticos, bem como indecisões e dúvidas derivadas de lacunas e de impossibilidades investigativas, é certo que a minha perquirição judithiana permite já o protaimento da amplitude da acção literária da mulher-poeta em quem um Albino Forjaz Sampaio divisava já a originalidade e o interesse artístico. Não se limita a sua acção literária à década de vinte. O conhecimento textual da obra de Judith Teixeira permite agora, com os materiais por mim carreados, a fixação do terminus a quo no ano de 1918 e o do terminus ad quem no ano de 1938, alargando para vinte anos o campo de análise dos ainda poucos mas determinados escoliastas judithianos. Sei, no entanto, como o diz a poetisa, que “Há-de chegar o dia / em que a [...] tristeza há-de acabar...”. Vai chegando em cada dia que passa.
De Judith Teixeira e dos seus oceanos rubros de sensualidade, um longo caminho trilhado ao sabor do sentimento, ressuma uma notável originalidade e a indiscutível força afirmativa de uma mulher que desafiava quaisquer estereótipos associados ao mundo feminino, sem o mais leve assomo de sexismo ou de reinvindicação parler femme , o que parece um mergulho parcial nos quesitos futuristas, sempre infensos ao feminismo e à debilidade. Tal presença do eu assertivo, que se estende a toda obra da escritora viseense, tem principalmente lugar na década de vinte do século que, de acordo com Norbert Elias, assistiu, com o acesso das mulheres a uma identidade própria, à maior revolução da história da sociedades ocidentais.
A permanência de um forte e instante eu na poetisa de Decadência exemplifica um espírito que, não obstante o dominante subtrato decadentista e o, por vezes, exuberante modernismo, percorre a cultura portuguesa e que se revela naquela cosmovisão peculiar com raízes no saudosismo, no solitarismo vivencial e no inquietismo. António Manuel Couto Viana, referindo-se ao lirismo de Judith Teixeira, defende tratar-se de uma "poesia nocturna, dionisíaca, que poucas vezes a alegria solar veste de luz."
Judith Teixeira, forte eu-assertivo, não é uma identidade dominada, porque, afinal, para um espírito de livre-exame, ser sujeito não poderia ser sujeitar-se. E esse é o voo da condição humana em busca da transcendência e da liberdade.
Voo final que afirma que o dissídio vivencial judithiano e o conexo alor lírico desrealizante são uma marca infungível na literatura portuguesa e um corte exicial com o esquecimento, como o parece dizer, desde há muito, este passo judithiano modulado por mim em palavra final:


Minha alma ergueu-se para além de ti...
Tive a ânsia de mais alto
-abri as asas ,parti!

Outubro
1922

Tuesday, July 04, 2006

Judith Teixeira em "José e os outros" de José-Augusto França



José e os Outros. Almada e Pessoa (romance dos anos 20) é uma narrativa de José-Augusto França, vinda a lume em Abril último, com a chancela (habitual, aliás) da Editorial Presença.
Não podendo dizer que estamos perante um grande romance, parecendo-me até que a espantosa informação do Autor tolhe a eficácia do texto, direi que a criação do estruturado intelectual é um importante feito paraliterário. Sem denegação do lume, que existe descontinuadamente, outro fulgor mais importa: conhecer a década de vinte lisboeta obrigará, doravante, a que consideremos esta publicação como inquestionável elemento de leitura. E outros e muito importantes existem na bibliografia de França.
Dentro do romance cruzam lugares (o Chiado, o Rossio, a Brasileira, o Bristol, o São Carlos, o Museu das Janelas Verdes…) e personagens reconhecíveis (Almada, Pessoa, Stuart, Barradas, Pacheco…). E existem ainda alusões que são marcos geodésicos de uma época fulgurante e contraditória.
Se é explicável que Thereza Leitão de Barros não tenha incluído Judith Teixeira na obra Escritoras de Portugal (Génio feminino revelado na Literatura Portuguesa), ensaio publicado em 1924 e muito em cima do êxito judithiano, o contrário penso relativamente a algumas obras de referência (dicionários de…) sobre mulheres intelectuais saídas nos últimos tempos, que, estranhamente, têm vindo a esquecer a poetisa aparatosamente.
O romance de José-Augusto França, referindo-se a Judith Teixeira, fala da sua “poesia sensual, ‘amorosa’, ‘pagã’”, que chocava com as “más intenções machistas”. Mais à frente, destaca-se a atenção da revista Europa a tudo o que acontecia de novo em arte.
Funda, a memória cava…

Thursday, June 22, 2006

"ABC" ou o momento da festa: o rosto popular de Judith Teixeira

Félix Correia, na revista ABC de Rocha Martins, de 21 de Junho de 1923, propõe-se "oferecer ás nossas leitoras, para os cravos de papel dos seus mangericos lindas quadras que as mãos gentis dalgumas das melhores poetisas portuguesas graciosamente lhes quizeram oferecer, por nosso intermedio". Apresentando cada uma das "melhores poetisas", Félix Correia convoca o nome da poetisa viseense e, antes de transcrever a quadra judithiana, produz o seguinte enunciado: "Dona Judith Teixeira cujo ultimo livro Castelo de Sombras é um reflexo da tempestade sentimental que a agita, deu-nos esta quadra onde passa a dôce sensualidade da noite de S. João, com cravos vermelhos a encherem de sangue os mangericos e comunhões francas dos sentidos a perturbarem as almas das cachopas". Mais se acrescente que as poetisas nomeadas e que responderam ao apelo foram, para além de Judith Teixeira, Maria Madalena Trigueiros de Martel Patrício, Fernanda de Castro, Maria de Carvalho, Oliva Guerra, Beatriz Delgado e Maria Leonor Reis.
De acordo com os ritos sazonais e com o Zeitgeist de então – a década de vinte é uma época literariamente multímoda e contraditória -, Judith Teixeira mergulha no espírito do povo, derrogando pela acção a notas meramente decadentista ou modernistas, e responde à provocação de Félix Correia, oferecendo às leitoras da revista ABC , em véspera de festejos de S. João, a quadra "para os cravos de papel dos seus manjericos" que a seguir se transcreve:

Na noite de S. João,
Ao som de alegres cantigas,
Anda o luar pelas fontes
A beijar as raparigas.

Esta adesão, ainda que pontual, a uma modalidade literária de ressaibos populares e românticos, fora, portanto, dos habituais requintamento, individualismo, sumptuarismo e esteticismo, assinala uma evasão onírica e espacial, dentro do espírito fantástico da libação dissipatória e orgiástica ("Anda o luar pelas fontes / A beijar as raparigas.") e da inserção numa certa recuperação medievalista, se se pensar no peso literário da palavra 'fonte' e na simplicidade evocativa das composições dos cancioneiros medievais. Ao mesmo tempo, pese embora tratar-se de um pequeno texto, resulta evidente a carga erótica que a quadra transporta - o que é, como se tem dito, uma permanência na criação judithiana e uma abertura consentida para a dominante etapa melancólica -, assim se construindo, nessa concisão, uma literatura armadilhada pelo fogo de Eros: o quadro inscreve-se no euforismo nocturno do festejo sanjoanino e na moldura musical da alegria libatória, circunstância propícia à convocação do objecto erótico "raparigas" - das palavras mais belas, diria o insuspeito Eugénio de Andrade - e na sugestão da sujeição amorosa transportada pelos saborosos e evocativos vocábulos "fontes", de tão entranhada simbologia medieval, e "luar", simbolizando este o princípio feminino e a renovação, abrindo-se assim várias possibilidades interpretativas, nomeadamente as de incidência sáfica.
Esta quadra judithiana, no rasto da simbologia de encontro amoroso que a palavra "fonte" assume na literatura medieval, é também um encontro com a festa e com a diferença - um passo necessário que não teme a nova experiência estética, que não teme a modernidade.


Friday, June 09, 2006

ligações fecundas: Aquilino Ribeiro & Judith Teixeira


Ligação fecunda anuncio de Aquilino Ribeiro, com cinco anos menos do que Judith Teixeira, que na cidade de Viseu nascera naquele ano de 1880. O futuro “Mestre da Nave” veria a luz do dia volvido um lustro, por 1885, na fagueira e rigorosa Tabosa (ou melhor, Carregal). E será esse espaço de tempo distanciador, mínimo à escala cósmica e muitas vezes importante nas relações humanas, que unirá como que por encanto este par literário da nossa cultura para uma vida diferente de próxima longevidade. Pense-se, nestes encontros e desencontros, que Aquilino morre com incompletos 78 anos (1963) e que Judith Teixeira falecera com 79 anos completos (1959).
Abandono Aquilino e pego em Judith, poetisa viseense de arrojo indenegável e, seguramente, um dos casos mais interessantes e obscuros da literatura feminina do nosso século XX . Ei-la que nasce em Viseu, ao tempo em que Simões Dias se dedicava como poucos à nossa cidade, em que as famílias viseenses (as letradas, claro) consumiam o seu tempo na leitura do D. Jaime de Tomás Ribeiro, em que (por exemplo) o médico benemérito Duarte de Almeida Loureiro e Vasconcelos encantava a cidade com a sua bondade e dedicação, em que muitos símbolos da nossa urbe procuravam ainda o seu lugar (como era diferente a zona do Rossio!), em que o virtuoso José Ribeiro de Carvalho e Silva regressava à cidade, em que o Padre Moura acabara de construir um órgão portátil (para celebrar a poetisa?), em que se preparava a inauguração da Praça 2 de Maio, em que...
Judith segue para Lisboa, onde viverá atribuladamente. Aquilino é o que se sabe: enquanto rebenta, em 1907, uma bomba no seu quarto, a poetisa é perfilhada por Francisco dos Reis Ramos, assim colocando alguma ordem na sua vida difícil. Em 1913, é dissolvido o casamento da mulher intelectual com Levy Azancot; a ironia do destino permite que, nesse mesmo ano, Aquilino Ribeiro case na Alemanha com Grete Tiedemann – e não são de estranhar, neste conjunto de dados e incidências, os apelidos estrangeiros dos felizes e infelizes consortes. Em 1914, o escritor vê nascer o primeiro filho, Aníbal Aquilino Ribeiro; no mesmo ano, Judith volta a casar, desta vez com o advogado e industrial Álvaro Virgílio de Franco Teixeira. Em 1922, Judith Teixeira colabora visivelmente na famosa revista Contemporânea, deixando alguns poemas numa publicação periódica “feita expressamente para gente civilizada” e “feita expressamente para civilizar gente”, e tida por muitos como um dos expoentes do nosso Modernismo; nesse mesmo ano, Aquilino, que era já um autor reconhecido e admirado (publicara Jardim das Tormentas, A Via Sinuosa, Terras do Demo e Filhas de Babilónia), conhece dias de perfeita glória intelectual – afinal, publicara a Recreação Periódica do Cavaleiro de Oliveira, o livro de contos Estrada de Santiago e tornara pública a conferência “Anatole France”.
Chega 1923 e sai a lume o primeiro livro de Judith Teixeira, Decadência, que conhece desde logo o aval de alguma imprensa da época. No entanto, as garras da intolerância cedo se manifestam pela boca de Pedro Teotónio Pereira e pelo jornal a quem concede uma entrevista. Instado sobre o que pretendia fazer a sua Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, de intenção repressiva e preventiva (?), Teotónio Pereira não tem dúvidas: "Fiscalizar as livrarias e meter também na ordem os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais como este, aquele e aqueloutro ." A edição perde-se nas malhas inquisitoriais. Da apreensão ao fogo vai um instante. O Governo Civil de Lisboa solta os mastins. Para lá de Decadência , são arrestadas para as cinzas a Sodoma Divinizada , de Raúl Leal, e as Canções , de António Botto. Não muito tempo depois, proíbe-se a peça Mar Alto , de António Ferro. Tudo em nome da moralidade em arte.
Aqui entra Aquilino, com a sua nobre justiça. "Que é moral ou imoral em arte?" , clamou bem alto, à época, o nosso escritor,referindo-se ao acirramento das autoridades. E mais disse nesse ano de 1923, reverberando frontalmente a censura que apreendeu o “livro da srª. D. Judith Teixeira, que é uma poetisa de valor”. Tais palavras, ditas assim desse modo, constituem um dos mais importantes actos judicativos sobre o lugar poético da escritora viseense.
É uma relação produtiva aquele que une os dois artistas. No bulício do escândalo e na aceitável curiosidade jornalística, Judith Teixeira é surpreendida a ler o recente livro de Aquilino Ribeiro Estrada de Santiago. Em entrevista a José Dias Sancho, a escritora refere-se, nesse mesmo ano de 1923, ao autor de Terras do Demo como um daqueles que “seduzem com sua Arte polícroma, intensa, luminosa.”
Em 1925, Judith Teixeira dirige na capital a revista Europa e nela, nos únicos três números saídos nesse mesmo ano, não deixa de estar presente o nome de Aquilino Ribeiro, que colabora no terceiro número.
Implicado na revolta contra a Ditadura Militar, Aquilino foge, em 1927, para a Beira Alta e daqui vai para França; Judith, que publicara Satânia, parece ter-se retirado para Espanha, finalizando, ao que se sabe, a parte mais visível da sua produção literária.
Em 1959, morrem Judith Teixeira, António Botto e Lasso de la Vega, figuras que conviveram entre si na década de 20. E muitas vezes o fizeram em casa da poetisa. Então, no momento da morte da escritora viseense, Aquilino é perseguido por via da publicação do romance apreendido Quando os Lobos Uivam. Nem cinco anos passados morreria Aquilino.
Da incompletude da vida, resta este halo relacional de produtividade e de encontros não desprezíveis. Desse fogo vai nascendo ainda uma figura não despicienda do nosso Modernismo. Basta olhar para a cidade e para a voz insinuada da velha Safo.

Friday, June 02, 2006

Judith Teixeira em "Terras de Portugal"



Terras de Portugal (Grande Revista Ilustrada) é uma publicação periódica dirigida por Gomes Barbosa e editada por Álvaro de Andrade entre os anos de 1925 e 1935, num total de 52 números. Apresentando valiosa colaboração literária, o magazine lisboeta, que manifesta evidente interacção com a judithiana Europa, é uma importante exemplificação da irradiante "literatura feminina" - designação a ser revista, pois ninguém fala de "literatura masculina"... - invasora da década de vinte, que é uma época curiosa, fulgurante, efémera e intervalar, com as suas múltiplas digladiações periodológicas e os encantos defluentes de uma geração poética que sucedia à proclamação da mensagem renovadora de Orpheu .
A revista nº 14 de 1828, na coluna agora descomplexada "Poetas de Portugal", contém os poemas "Natal" de Beatriz Delgado, "Soneto" de Branca de Gonta Colaço, "Sombra e Clarão" de Eugénio de Castro e "O Poemeto das Sombras" de Judith Teixeira.
Bem dentro dos estilemas judithianos, este poemeto, subsumindo-se na escassez física titular de pequeno poema, inscreve-se desde logo no tom cinéreo do dionisíaco. Acumulando notas para um cenário agreste e ominoso - a ventania ruge, as árvores desfolhadas gemem, o sino estridula à meia-noite...-, a comparação, como elemento estilístico-retórico predominante nas duas primeiras estrofes, instaura os pares 'arvores gemendo como almas na agonia' e 'a voz do sino como uma boca cavernosa’ que fornecem ao poema uma tonalidade angustiante.
A terceira estrofe segue e adensa o tom sufocante de sofrimento, particularizando o crescendo emocional pela liberdade sintáctica e pela diminuição métrica. De facto, esta sétima voraz sucede a duas estrofes, uma quadra e uma quintilha, nas quais, ao gosto decadentista, o adjectivo sugestivo e pleno de emoção reganhava o centro através de um ritmo predominantemente binário, deixando transparecer na criação ambiencial uma força próxima e correlata das artes plásticas. Ser conflituante por natureza, o sujeito poético decadentista, qual herói perfeito, sofre com a insuficiência dos outros e compraz-se no seu isolamento social que mais e melhor vê. Afinal, "Ha lares em festa - / e fóme pelos caminhos / da desgraça.". Esta ironia trágica expressa uma presença mais vincada do eu poético através daquele "minha amargura", que indica, neste contexto, uma emotividade lírica rente ao pensar-sentir do emissor poemático.
De seguida, a quarta estância inicia-se com a imprecação "Meu Deus!", abrindo-se por aí o debate sobre a construção divina que o sujeito lírico entrevê. Transcendente ao homem e ao mundo, Deus irrompe do poema de Judith Teixeira como o ipsum esse subsistens, de acordo com a tradição metafísica do imanentismo. Nomeando-O sem que tal obstrua a Sua transcendentalidade, o acto imprecativo poemático é uma súplica ao divino que afirma a impotência humana para dar solução a problemas cruciantes a que um Deus absconditus assiste impávido. Interrogando duas vezes, numa prece súplice, as perplexidades formuladas não consentem respostas, assim permanecendo na sua pureza etiológica.
Mas mais diz este passo do poema. Por exemplo, que se trata de uma criação inserível no âmbito das temáticas do religioso, como o comprovam, mais uma vez, os dois versos finais dessa quintilha: "Por que é que nesta noite em que nasceu Jesus / o Ceu, não se sorri, cheio de luz?". José Régio e Alberto de Serpa afirmam, sem que tal directamente se relacionasse com Judith Teixeira, que quase "todos os melhores poetas portugueses se voltaram, uma que outra vez, para Deus". Assim aconteceu com a poetisa viseense, que, percorrendo os caminhos do Divino e do mistério do Natal na composição em análise, cumpriu ainda o religiosismo poético de convocar para o seu mundo as figuras de Nossa Senhora, de Santa Maria Madalena ou os passos da Paixão de Jesus Cristo. Nenhuma antologia religiosa de poesia portuguesa, que eu conheça, soube integrar em si algum exemplar judithiano, o que, podendo não ser abonatório para a autora, mostra também a actualidade do preceito de Ruy Belo de haver "tanta gente esquecida, tanto trabalho ignorado..." à espera de uma mais sábia recolocação.
A quadra subsequente adensa o dolorismo invasor com a notação do entediamento subjectivista do sujeito lírico ("Exalo-me em tédio!"), desenvolvendo a estrofe seguinte, a última, a toada decadentista persistente, seja na presença daquele "mundo de engano" fornecido pelo envolvimento do corpo num tecido luxuoso ("Sobre a sêda vermelha que me envolve"), seja no carácter nocturno e espectral do fechamento poemático ("e lá fóra batalham peito a peito, / revolvendo as trevas ululando, / longos fantasmas / de negras silhuetas!"). E não será despicienda para a compreensão da "forja" judithiana a presença opositiva e criativa da intensidade interior, sugerida pelo vermelho da seda, a par da passividade do tédio, inscrita pelas tonalidades violetas da luz e pelo cinerário das trevas. No fundo, a obra de Judith Teixeira manifesta continuadamente essa tensão, que, vistas bem as coisas, é constitutiva de uma idiossincrasia poética singular.
A revista nº 26 de 1930 (Ano VI), na senda feminina assinalada, publica textos de Teresa Leitão de Barros, Júlia Lopes de Almeida, Virgínia Victorino, Laura Chaves, Oliva Guerra, Emília de Sousa Costa, Maria Amélia Teixeira, Maria Assunção da Silva Miriam, Rosa Silvestre... mas mais nada se diz da silenciosa Judith Teixeira.