Saturday, October 07, 2006

para um perfil identitário de Judith Teixeira


"Sim, não sabes. Pois é a única coisa que um caloiro pode sa-
ber: o que é." (Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva )


"Dá-me alegria...
Incendeia meu sangue arrefecido!
E depois meu amor...
Depois... deixa-me sonhar..."
(Judith Teixeira )


Como há muito se sabe, definir ou confinar é estabelecer uma fronteira. Logo, essa tentativa, ensaio que muitas das vezes é mero exercício do intelecto, visa limitar, para melhor perceber. Restringir é, então, um método, um caminho constritivo e penoso com uma finalidade elucidativa e amplificadora.
Para a construção da identidade individual de Judith Teixeira, interessa delimitar conceitos, avançar cautelosamente e logo vogar nesse mar vasto que nos conduz sempre a porto desconhecido, uma vez que entendo a essência dum trabalho deste teor, de pendor ensaístico, como uma aventura que acaba para logo começar, texto em aberto à espera de complemento ou de elisão. Aliás, vai nesse sentido o conjunto de asserções que Sílvio Lima aduz no seu magnífico e sempre estimulante Ensaio sobre a essência do ensaio, que, de seguida, transcrevo: "Quem faz ensaios, embarca numa aventura em pleno mar alto; depois de muita tormenta sobre as ondas, lança ferro aqui, mas para logo desaparelhar no dia imediato e seguir novo rumo. Até quando e até onde? Até... sempre, ou até... nunca; até ao infinito!"[1]
E depois, para que o carácter movediço se instale de vez, há que relembrar aqueles versos finais da primeira estrofe do poema "Adeus" que instauram a certeza de estarmos perante um sujeito poético que, eco do plano da excepcionalidade em que se coloca, afirma um forte e assertivo eu: "... o que eu não sei / é ser banal!"[2] Mas, antes desse aprofundamento da identidade individual judithiana, acertemos alguns conceitos e ideias. Afinal, como definir identidade, sabendo-se, como se sabe, que o seu par operativo idêntico, sendo um dos conceitos fundamentais do pensamento, é "impossible par conséquent à définir"[3] ? Assim, é idêntico o que é único e singular, não obstante as plurímodas formas de nomeação. Logo, é idêntico o que é constante e o que permanece igual a si mesmo no abismo do transcurso histórico e do devir temporal. E esta limitação do idêntico, implícito irrefragável da definição, arrasta consigo, neste esforço de captação da unidade primigénia, palavras que, sendo sinónimas do objecto de circunscrição, não preenchem capazmente a sua essência, até porque, quando dizemos que é idêntico o que é na realidade um , temos a noção de não existirem verdadeiros sinónimos, caindo logo no domínio da tautologia, uma vez que, ao definirmos, dizemos " x é y", utilizando o verbo copulativo ser, o que supõe, desde logo, uma identidade, e usamos também o termo um , que não pode deixar de ser um sinónimo do objecto a definir, não obstante as constrições assinaladas [4]. Assim, o idêntico permite resolver o problema identitário que se coloca, ao passo que o diferente é ainda algo a deslindar. No entanto, essa oposição conceptual clara encerra uma implicação clara, o que permite definir, sendo o par operativo a própria definição, o que, de algum modo, não anda muito longe do que Roland Barthes defende em Mitologias, quando se refere à identidade dos intelectuais segundo Poujade: "Poujade diz-nos apenas que só entrarão no seu Olimpo “os intelectuais dignos desse nome”. Eis-nos reduzidos, uma vez mais, a uma dessas famosas definições pela identidade (A=A), que aqui mesmo chamei, repetidas vezes, tautologias - isto é, ao nada.”[5]
Nesta reflexão sobre o idêntico , interessa ainda fixar-se que, seja na vertente psicologista, seja em análise metafísica, não existem seres idênticos entre si, havendo, isso sim, no próprio ser individual, uma constância identitária consigo mesmo, até porque o seu passado se reflecte no presente e quaisquer modificações diacrónicas são solidariamente diluídas nesse fluir da tradição, constituindo-se, in fieri , num só ser, ainda que múltiplo e heterogéneo. Dessa heterogeneidade, fala-nos, por exemplo, um inspirado Raul Brandão nas inesquecíveis páginas do seu Húmus: "Há um ser que ocupa o meu ser e me domina quer eu queira ou não queira."[6]
A característica do que é idêntico, por seu turno, denomina-se identidade, podendo tal traço identitário advir da notação numérica ou matemática, pessoal ou individual, jurídica, moral, qualitativa ou específica, encerrando-se aqui este rol abaixo do postulado de S. Tomás de Aquino das vinte e sete espécies de identidade. Resulta ainda evidente, nesta súmula teórica, que, muitas das vezes, aquilo que se reveste de idêntico, em análise mais minudente, reganha foros de semelhante . Aliás, não obstante a dispersão do início do parágrafo, diga-se que dificilmente poderemos aceitar, salvo no plano ideal, a existência de dois objectos com distinção espácio-temporal e iguais qualidades. Este asserto vai de encontro ao postulado de Wittgenstein que prescreve que "dizer de duas coisas que elas são idênticas, é sem sentido, e dizer de uma coisa que ela é idêntica a si própria, não diz absolutamente nada." [7] Contudo, o usus pragmático das palavras idêntico e identidade relativamente a duas realidades ou objectos aponta para uma igualdade que, quase nunca se verificando, se subsume aqui à confluência de efeitos e usos. E será nessa intersecção funcional que encontraremos a mesmidade, decalque ostensivo da mêmeté do voltairiano Dictionnaire philosophique .
O princípio da identidade recobre comummente a asserção: "O que é, é e o que não é, não é." Tal postulado arrasta a necessidade da constância terminológica, da intemporalidade e da imutabilidade como quesito ideal, pois, como facilmente se compreenderá, o que é verdadeiro ou falso hoje, sê-lo-á sempre. Daí a perenidade da verdade e a dificuldade de a fixar. De facto, em termos identitários, é tarefa árdua a construção do lugar da pessoa em processo de identificação, com a premência da individualização dos seus modos de conduta e de pensamento ou com a necessidade do enriquecimento egótico através de vinculações emotivas diferenciadoras.
Condicionada pela historicidade, a identidade é algo de dinâmico e não-definitivo, com espaço para um constante construir-se, havendo, nesse processo de identificação , uma tensão dialéctica repartida entre oposições, contestações, diferenças e derrogações, o que, de facto, não obstante a aparente infirmação presente nesse fogo ameaçador, mais assinala, tornando nítida, uma identidade cultural. E, acrescente-se, nesse gume interpretativo perpassa uma hermenêutica que nos conduz à redescoberta do real e a uma mais perfeita autognose.
Mas, retomando a ideia de identidade cultural a que atrás aludi, convém que fixemos uma "definição" de cultura, que é um conceito que sempre refoge a confinações e delimitações, optando aqui eu por seguir a proposição simplista e conglobadora de António José Saraiva que defende que cultura "opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito."[8] E assim a identidade cultural tem que ver com a individualização peculiar desse acrescentamento, tendo-se por certo que uma relação identitária deste teor assume as dimensões existencial ( que se prende com o continuum da redefinição de uma identidade), simbólica ( tem que ver com os símbolos perenes que provocam uma identificação) e institucional (com a instituída identidade histórica e com a instituinte doxa comemorativa).
Quase no fim deste primeiro passo, não me parece destituído de nexo acrescentar que de uma identidade individual releva sempre uma identidade nacional, seja por vinculação a uma Heimat, seja por repulsão de desenraizamento, seja, por último, por incapacidade desvinculativa de cinéreas e peregrinas raízes que, não pesando muito, são sempre alimento do sopro individual que dirige o percurso in fieri. Logo, na construção identitária do indivíduo está compresente toda a problemática da identificação nacional resultante da intersecção da sua apropriação cognitiva, da diversa assunção social, dos factores objectivos que a recobrem e do evolucionismo manifestativo de que ela é exemplo.
Seja este entrecho teórico-prático, pois, um contributo para a compreensão da identidade (e dos seus abismos) de uma poetisa que, ao arrepio da época e do vulgar modo feminino literário de prevalência da vertente sentimental do neo-romantismo lusitanista, nos faz agora agitar o estranho silêncio que lhe sucedeu. E aqui radica o espanto. É que Judith Teixeira, detentora de um vincado e assertivo eu, e perdoe-se aqui a glosa kantiana, era e é uma mulher-poeta saída da menoridade pela força do entendimento. E tal superioridade (que não genialidade), presente até na sua multímoda acção literária, inscreve-se naquele reconhecimento identitário, no gume do dissídio individual, que recolhemos nos versos finais do soneto "Quem és?": “Eu sou a fria dôr do Intendimento,/ á luz fria da Verdade, a iluminar-te!” [9]. Disse a voz dos homens e não dos deuses pela boca da mulher cujo perfil identitário ainda mal se desvela nesta porta que de novo abro...

[1] Sílvio Lima, Ensaio sobre a essência do ensaio, 2º edição. Coimbra, Arménio Amado, Editor, Sucessor, 1964, p. 116.
[2] Judith Teixeira, Núa. Poemas de Bysâncio, Lisboa, Editores: J. Rodrigues & C.a, 1926, p. 83. Na edição preparada por Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, ver Judith Teixeira, Poemas, Lisboa, &etc, 1996, p. 178.
[3] Cf. André Lalande, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, 15 e édition, Paris, Presses Universitaires de France, 1985, p. 454.
[4] Cf. Ludwig Wittgenstein, Tratado Lógico-Filosófico. Investigações Filosóficas, 2a edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, pp. 46-47: "Na linguagem corrente sucede muito frequentemente que a mesma palavra designa de modo e maneira diferentes - e portanto que pertence a símbolos diferentes - ou sucede que, duas palavras que designam de modos e maneiras diferentes, são aparentemente empregues na proposição do mesmo modo e maneira. Assim a palavra “é” surge como cópula, como sinal de igualdade e como expressão de existência; “existir” como verbo intransitivo, como “ir”; “idêntico” como adjectivo; falamos de alguma coisa , mas também de que acontece alguma coisa . (Na proposição: “Verde é verde” - em que a primeira palavra é um nome próprio, a última um adjectivo - estas palavras não têm apenas uma denotação diferente, mas são símbolos distintos. )". (§ 3.323)
[5] Roland Barthes, Mitologias, Lisboa, Círculo de Leitores, 1987, p. 205.
[6] Raul Brandão, Obras Completas de Raul Brandão-VI: Húmus, Lisboa, Círculo de Leitores, 1991, p. 55.
[7] Ludwig Wittgenstein, op. cit. , p. 107 (§ 5.5303).
[8] António José Saraiva, Cultura, Lisboa, Difusão Cultural, 1993, p. 11.
[9] Judith Teixeira, Castelo de Sombras, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923, p. 38..