Tuesday, July 08, 2008

Cabaré de Ofélia




Cabaret de Ofélia - Uma viagem de múltiplos sentidos

O encontro com a obra de Armando Nascimento Rosa é sempre uma surpresa, pela ousadia com que este autor trabalha os intocáveis mitos do imaginário cultural europeu. Desde os mitos clássicos, como Um Édipo, ou A Última Lição de Hipátia, passando pelo universo judaico-cristão em Maria de Magdala até se centrar no cerne do imaginário português, como no texto O Eunuco de Inês de Castro, ou ainda, Audição – Com Daisy ao vivo no Odre Marítimo, Armando Nascimento Rosa vai desfiando o rosário do outro lado dos textos e da vida, como se fosse o feliz neófito capaz de viajar para além do conteúdo manifesto. Dotado de uma invulgar capacidade de análise e ousadia Armando Nascimento Rosa aprofunda o visível e resgata personagens votadas ao esquecimento, como Ofélia Queiroz, a eterna namorada de Pessoa, ou a poetisa modernista Judith Teixeira. Encenado por Cláudio Hochman, Cabaret de Ofélia reúne personagens singulares como Daisy, assumida como uma artista transformista que criou nome em terras de Vera Cruz como “uma lenda viva da poesia e do music-hall”, como Cecília, a filha adoptiva de Daisy como a esquecida poetisa Judith Teixeira, ou ainda como Mary Burns que Armando Nascimento Rosa reconstitui com a personagem principal de Labareda, a peça desaparecida de Judith. Daisy, por si só, é uma personagem complexa na Dramaturgia de Nascimento Rosa. Como ele próprio afirma no seu estudo Judith Teixeira em Cabaré de Ofélia: O resgate cénico de uma voz dionisíaca “Em Audição, a figura de Daisy Mason Waterfields (este segundo apelido aquático é baptismo meu) era a cicerone xamânica, transexual e hermafrodítica, recriada a partir da figura de enigma nomeada em Soneto já Antigo, e a quem a persona de Álvaro de Campos dedica o poema.” Daisy parte para o Brasil onde encontra uma menina de rua, que perfilha, e que é evocada num poema de Pessoa que, segundo Armando Nascimento Rosa, “confessava a certa altura ter uma afilhada orfã, chamada Cecily, arrancada também ela a Soneto já Antigo”. A partir dessa informação o autor cria todo um enredo de encontro que resgata Cécily das ruas e a apresenta como co-cicerone de Daisy, a sua mãe adoptiva. Juntas contam a história de Judith Teixeira, recriando um trecho de Labareda, o seu texto desaparecido. Bonita e merecida homenagem de Nascimento Rosa a essa poetisa futurista da geração de Orpheu.O espectáculo, apresentado no salão nobre do Teatro Garcia de Resende, começa com a entrada dos músicos. Excelente formação, composta por um baterista, um contrabaixista e um pianista, (Ulf Ding, João Bastos e Luis Cardoso) que vão acompanhando ao vivo a evolução do Cabaret. A entrada encenada dos músicos, na qual trocam de posições, é já uma antevisão dos cruzamentos que o espectáculo irá sofrer. Os figurinos de Sara Machado da Graça dão ao espectador uma noção de transgressão, necessária para o posterior acompanhamento do espectáculo. Ofélia Queiroz, interpretada por Rosário Gonzaga, assumindo a vetusta idade, entra em cena e junta-se ao público do café teatro. A actriz Catarina Matos assume no espectáculo as suas mágoas quanto à sua condição de mulata, amiúde rejeitada em vários castings. Conta como encontrou Ofélia, não a de Hamlet mas a eterna namorada de Pessoa, e como esta lhe passou a caixa de recordações de Cecília, a menina adoptada por Daisy. O espectáculo, sustentado por um texto inteligente, mostra uma Daisy transformista, interpretada magistralmente por Hugo Sovelas, que, deslizando nos imensos saltos altos, é capaz de divertir e emocionar a assistência. É comovente a cena do encontro de Daisy com Cecília, a partir da qual as duas se tornam inseparáveis, mostrando um olhar maternal, capaz de albergar qualquer menina perdida.Rosário Gonzaga é uma Judith Teixeira exímia, mostrando o lado dorido de uma poetisa sofrida. A dor partilhada da queima dos livros, protagonizada pela censura, é sentida pelos espectadores através do olhar perturbado da poetisa. Comovente como Rosário Gonzaga consegue mostrar tod o desespero de um autor a quem estão a queimar a obra: Com o seu olhar perturbado recita: “Cheira a carne queimada. A carne de pessoas que foram queimadas vivas na praça. O cheiro é insuportável, é o cheiro da asfixia. Sou uma das que ardeu neste auto-de-fé. Não, não foram só papéis que arderam, foram membros, foram troncos. Foram seios, foram corpos de amantes reduzidos a carvão... Pois se são imorais os meus poemas e falam de vícios da carne abomináveis, então esses mancebos de raça pura que os queimaram lançaram também ao fogo o corpo de quem os escreveu. E com o meu corpo arderam corpos e lugares celebrados nos meus versos e nos versos dos meus parceiros de blasfémia.” Judith Teixeira foi queimada viva na fogueira com os seus livros. Mas, como nos diz Nascimento Rosa, “E quem sabe as luzes do palco incidirão sobre ela com mais intensidade do que as breves linhas que alguns dicionários de literatura hoje lhe consagram? (…) Cabaré de Ofélia tematiza teatralmente esta rasura, procedendo a um resgate de Judith, bem como do que o seu olvido representa, através do poder da cena, para a qual não hesitei em imaginar-lhe os versos que ela teria proferido na praça onde lhe queimaram os livros.”, a personagem de Judith Teixeira sucumbe a um cancro com a mágoa de ter visto os seus escritos destruídos na pira da censura. A trágica história de Mary Burns, a negra albina violentamente assassinada, é recriada por Catarina Matos e Rosário Gonzaga. Fazendo ainda justiça à poetisa maldita, o espectáculo termina com um soneto da sua autoria musicado e cantado por Daisy e Cecília.Como o autor disse, “Cabaré de Ofélia é antes de mais um experimento em fuga à convergência dramatúrgica num clímax definido que cumula a progressão dramática, próprio da tradição aristotélica. Parodicamente consciente da interpretação falocêntrica que esse singular clímax pode acarretar, esta peça substitui-o, no seu mosaico de sucessão e justaposição cabaréticas, dramáticas e cómicas, numa proliferação de clímaxes, como metáfora dos orgasmos múltiplos que só ao corpo da mulher é dado fruir. Imagino que esta metáfora erótica, projectada em drama, teria por certo agradado à sensualista Judith Teixeira, e por isso estou em crer que o seu fantasma teatral gostará de habitar a partitura virtual que concebi, para acolher a censurada Judith, nesta arte da memória viva tornada espectáculo a que chamamos teatro.”
Ana O