Friday, September 05, 2014

«Errores e lugares-comuns sobre Judith Teixeira: o caso de Portugal século XX. Crónica em imagens (1920-1930)», de Joaquim Vieira


Errores e lugares-comuns sobre Judith Teixeira: o caso de Portugal século XX. Crónica em imagens (1920-1930), de Joaquim Vieira

Abundam no conjunto de textos referenciais e de literatura crítica, em boa parte da produção cinzenta e, algumas vezes até, em manuais e livros escolares, clamorosas gralhas e informações mais lesivas do que quaisquer omissões. Não indo longe, lembro a famigerada entrada da Grande enciclopédia portuguesa e brasileira sobre José Régio, dando-o nascido em 17 de setembro de 1899[1]. Ora o ano de nascimento de José Régio, como se sabe, é 1901. A clamorosa falha é gravíssima, fazendo recuar Régio de um século, lev ando durante tempo que não pode ser aferido a que muita e muita gente, fazendo profissão de fé da «lei enciclopédica», labore em erro inconscientemente.
Não são abundantes os escritos sobre Judith Teixeira, infelizmente. E, no entanto, há inúmeros reparos a fazer sobre o que se tem dito. Por exemplo, neste volume[2] sobre a década de vinte, inscrevem-se, na página 76, informações claramente erradas e até afirmações de teor discutível. Diz Joaquim Vieira:

O resultado de tudo isto[3] são «imagens femininas androgínicas, viciadas, insatisfeitas, retocadas, artificializadas, desconcertantes – brinquedos dispendiosos», que a revista Europa vê em 1925 nas casas de chá do Chiado.
Mas, para lá dos rituais da futilidade, as mulheres começam agora a participar activamente na vida intelectual e artística. Emergem nomes que se tornam conhecidos, como o da poetisa Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, ou o da pintora Sarah Afonso, que casa com Almada Negreiros. Judith Teixeira (ou «Lena de Valois»), amiga do casal Negreiros, é o paradigma da mulher livre da época, como reflecte nos títulos de ousadas obras poéticas: Amorosa, Sinfonia pagã, Meus vícios, Decadência, Nua, poemas de Bizâncio. [4]

Não deveria o autor, no caso do primeiro parágrafo, informar que a revista Europa era dirigida por Judith Teixeira, o tal «paradigma da mulher livre da época» como Vieira dirá à frente? Não deveria ainda, face a isso, matizar o significado do excerto, que aparece com um tom crítico não compaginável com o espírito Judithiano? Parece-me que sim.
Agora vem o pior: atribuir a autoria dos três primeiros títulos elencados no segundo parágrafo é desconhecer, de todo, Judith Teixeira. E mais: é rasurar a também grande poetisa que foi Beatriz Delgado, que é, de facto, a autora das obras. Amorosa[5], Sinfonia pagã[6] e Meus vícios (Confissões)[7] não integram a obra de Judith Teixeira. A convocação da poetisa, no entanto, não deixa, pesem embora as contingências referidas, de ser mais um contributo para a inscrição da escritora no centro literário.
Sem sussurro ou clima de pétreo museu, a verdade impõe-se e não há bicos de pés que a calem.

                          Viseu, 5 de setembro de 2014
                           © martim de gouveia e sousa




[1] Cf. op. cit., volume XXIV, Lisboa – Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, s.d., p. 808. O erro não aparece na corrigenda final. A clamorosa falha é espantosa, uma vez que a enciclopédia é colaborada por gente grada e reputada. Tratando-se sempre de entradas não assinadas ou subscritas, o dedo acusador deve ser dirigido para esse todo abstrato que é a Enciclopédia!
[2] Joaquim Vieira, Portugal século XX. Crónica em imagens (1920-1930), Lisboa, Círculo de Leitores, 1999.
[3] O autor refere-se aqui às necessidades cosméticas das senhoras e à profusão de revistas femininas na década de vinte.
[4] Id., ibid., p. 76.
[5] Beatriz Delgado, Amorosa, Lisboa – Rio de Janeiro, Portugália Editora, s.d. [1921].  
[6] Beatriz Delgado, Sinfonia pagã, Lisboa – Rio de Janeiro, Portugália Editora, 1925. O livro conheceu, neste mesmo ano, mais duas edições.
[7] Beatriz Delgado, Meus vícios (Confissões), Lisboa, Editores: J. Rodrigues & C.ª, 1926. 

Tuesday, September 02, 2014

O CONTRIBUTO INDIVIDUAL JUDITHIANO NO IMAGINÁRIO CRIATIVO DE FRANCISCO MANUEL CABRAL METELLO (1893-1979)


O CONTRIBUTO INDIVIDUAL JUDITHIANO NO IMAGINÁRIO CRIATIVO DE FRANCISCO MANUEL CABRAL METELLO (1893-1979)

Interessando aos escoliastas da coisa literária o clarão talentoso, não espanta que muitos sujeitos da escrita sejam projetados para a margem, aí permanecendo em incógnita sepultura até ao declínio absoluto. Estranho é, no entanto, que nessa literatura larvar e ferrugenta se procure esconder a todo o custo, parece, o azul da diferença e da sinceridade.
Por exemplo, talvez não tenha mal que poucos conheçam, lembrem ou queiram lembrar Francisco Manuel Cabral Metello[1], também Francisco Manoel Cabral Metéllo[2], não obstante o interesse que sempre detém o objeto literário que é, como no caso, um importante paratexto sobre a Lisboa decadente e o inciso estilo decadentista que foi, na literatura portuguesa, uma das faces da modernidade (Calinescu dixit).
De fevereiro a dezembro desse ano de 1923, e antes também antes e depois, mas tudo muito limítrofe, percorrera Judith Teixeira um invulgar caminho de escolhos e, seja dito, de glória. Aliás, a proscrição de Judith Teixeira tudo deve ao invulgar exibicionismo de vontade e de não sujeição patenteado nesse ano e no anterior. Daí ao banimento foi um instante. Lenta, a doxa literária diz já que a ação de Judith Teixeira é força cívica e qualidade literária. Desacompanhada dos maiores nomes, ao contrário de Metello, v.g., a agudeza judithiana descola da margem e vira ao centro. Na complexa contratura canónica, Judith Teixeira há muito que deixou de ser caso despiciendo ou episódio inenarrável. E junto, sem apêndice, a republicação, por parte da Universidade de Coimbra, da coletânea Castelo de Sombras[3], já em 2014, no âmbito da comemoração dos 500 anos da biblioteca da instituição, integrando o livro a série II das edições fac-similadas distribuídas e editadas em parceria pela jornal Público. Ainda assim, um reparo: a vetusta e grave universidade optou pela obra judithiana mais contida e, claro, de qualidade indesmentível, como todas as outras.
Judith Teixeira não é mais o pessoano não lugar, é antes o valor que Aquilino e outros nela descortinaram. Lembro e relembro que não se conhece linha que defenda Judith Teixeira da tentativa de enxovalho público vinda daqueles autores que tinham o mesmo «corpo em pessoa», para parafrasear o magnífico título[4] e não menos excelente livro editado por Anna Klobucka e Mark Sabine, a que voltarei em breve. E refiro-me, claro, a Botto, Pessoa, Raul Leal e, por que não, Francisco Metello, bem ativos nessa época na passividade perante o ataque à sexualidade e à capacidade literária de Judith Teixeira.
Não me parece que ande arredada desta polémica a postulação, colhida em Anna Klobucka e Mark Sabine, segundo a qual a vindicação social pessoana da homossexualidade masculina visava «posicionar o homossexual masculino no vértice mais elevado, e não no dúbio terreno intermédio, de uma dicotomia misógina que associa a masculinidade à cultura e a feminilidade com a natureza e o tipo de sexualidade que põe em risco o progresso cultural»[5]. E este parece-me ser o ângulo exato da inação dos escritores epocais de Sodoma –  a blague sexista era-lhes artefacto de exclusão e sublimação.
Nada me move contra Francisco Metello e a sua obra, que considero interessante e exemplificativa de uma certa literatura vintista. Destaco, isso sim, o desacordo face aos atos judicativos e valorativos expendidos a respeito de escritores nem sempre maiores que, sendo homens, expressavam uma sexualidade afim de umas poucas mulheres que viam a sua ação minada pelo silêncio e pelo desprimor – vindo de dentro da literatura, a posição dominante castrava as filhas de Safo. Mas poderia Judith Teixeira ser deslocalizada?
Metello fez publicar em dezembro de 1923 as suas Entrevistas. Ater-me-ei apenas ao quadro «A praga» (pp. 63-69), que é bem aferidor do pulsar daquela década de vinte e, já agora, da irradiação judithiana. Eis alguns pontos que destaco da pequena ficção, para rápida conclusão:

1.      A novel poetisa Rachel da Fonseca Soares escrevera um primeiro livro de rimas com o impossível título «Rebentos d’ uma manjerona» e procurava expô-lo na montra de uma livraria moderna.
2.      A caixeira, face às pretensões de decoradora que a poetisa manifestava, exclamou «Ai, eu já não posso com estas literatas!», no que foi corroborada pelo groom, que complementou: «Estas alforrécas qualquer dia trazem a família toda para expor na montra».
3.      A cena dialogada contém indicações e informações, sendo uma delas a de que uma «dama elegantemente vestida entra e fica examinando alguns livros francezes».
4.      E depois surge um principal momento que importa reter, porque bem exemplificativo do escândalo há pouco vivido e dos gostos epocais. É esse lance que transcrevo:

CAIXEIRA
V. Ex.ª deseja algum «Vient de Paraitre»[6]?

DAMA
Queria Namorados[7], tem?

CAIXEIRA
Apenas um.

DAMA
Embrulhe-o, sim?...

CAIXEIRA
Já está. Era d’uma fregueza que não voltou a procural-o.

DAMA
Em voz baixa. – E Decadencias[8]?...

CAIXEIRA
Foram com as Garçones para o Governo Civil.

DAMA
Oh! Isso é verdadeiramente inquisitorial!

CAIXEIRA

Sim, minha senhora, uma arbitragem…[9]
   
Ora a obra de Metello traz-nos, como vimos, uma poetisa relativamente fútil, com um título quase ridículo, mais preocupada em alindar a apresentação da montra do que certa da qualidade da obra. De literata a alforreca corre um nada e a escritora nada pode opor a um julgamento nas costas dirigido principalmente às mulheres como em tantos casos de literatura crítica e recensória na época. Como anteriormente, os ventos de França dominavam o país e face a uma literatura de literata propõe o autor a vocação gaulesa. Ressalvo, no entanto, a caracterização de inquisitorial e arbitrária a apreensão dos exemplares de Decadência. O resto e outras conclusões são precisamente o que já ficou dito atrás sobre a associação da masculinidade à cultura e a assunção por parte dos homossexuais homens desse primado.
A tragédia judithiana tomou, pois, o imaginário de Francisco Manuel Metello. Parece ainda que muito falta escrever sobre outras contradições e múltiplos receios que são ainda parte de nós.

                                                                   Viseu, 2 de setembro de 2014
                                 
                                                                             © Martim de Gouveia e Sousa

[1] Autor de Sáchá. Comentários á vida moderna, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923.
[2] O mesmo escritor da nota anterior, autor de Entrevistas, Lisboa, Portugália Editora, 1923. Esta obra integra, na parte final, «Uma carta» (pp. 183-186) de Aquilino Ribeiro e umas «Palavras» (185-188) de Fernando Pessoa.
[3] Castelo de Sombras conhece, até ao momento, as seguintes edições: Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923; a inserta em Poemas, Lisboa, &etc, 1996; e a fac-similada supramencionada.
[4] Refiro-me ao livro de Anna M. Klobucka e Mark Sabine (eds.), O corpo em Pessoa. Corporalidade, género, sexualidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.
[5] Anna M. Klobucka e Mark Sabine, op. cit., p. 43.
[6] Forma eivada da francesia epocal que dominava as estratégias editoriais. Lembro que Judith Teixeira foi ridicularizada por Amarelhe n´ O Sempre Fixe, em 1926, sob a intitulação «Viande de paraitre», onde um desenho da poetisa desnuda, com um revólver apontado à cabeça («pim»), encabeça um poema de título «A bailarina côr de sangue»: «Ela pena, / entornando suor, / A desfazer-se em banha, / Um sonho de volupia / Logo ali se desfaz / Em franca gargalhada / Ao vê-la desgrenhada, / E ela passa / Fulva, anafada, indecente, / Flôr do vício /
Espapaçando graxa / Na agua gordurosa / Que ela sua / Como chouriça ardente,  / Infernal e langorosa / … Toda nua… / Toda nua!...».
[7] Alusão ao livro de grande êxito da poetisa Virgínia Victorino. De facto, Namorados teve uma 1ª edição em 1921 (Lisboa, Ofic. Ilustração Portugueza), embora a página de rosto assinale 1920, a que se seguiram, no mesmo ano, uma 2ª (Lisboa, Ofic. Ilustração Portuguesa) e uma 3ª (Lisboa, Ofic. da Sociedade Nacional de Tipografia);uma 4ª edição em 1922 (loc. cit.); e outras, vindo o título a perfazer catorze edições em 1943.
[8] Trata-se do primeiro livro de Judith Teixeira, Decadência, que conheceu em 1923 duas edições, a 2ª acabada de imprimir aos 28 de dezembro de 1923 e a 1ª praticamente destruída pela sanha persecutória dos guardiões da moralidade nesse início de 1923. Garante a excelente edição da &etc que a edição de fevereiro de 1923 se perdeu. Ora isso não é bem verdade – eu possuo uma e até já tive outra, que cedi porque muito me pediram.
[9] Francisco Manoel Cabral Metéllo, Entrevistas, Lisboa, Portugália Editora, 1923, pp. 67-68.

Tuesday, August 26, 2014

Importante ensaio de Fabio Mario, de título «O mito da Medusa e sua relação com a poesia de Judith Teixeira», foi publicado em «Todas as Musas»

Importante ensaio de Fabio Mario, de título «O mito da Medusa e sua relação com a poesia de Judith Teixeira», foi publicado em Todas as Musas, ano 06, nº 1, jul.-dez. 2014. Ver AQUI

Sunday, August 24, 2014

O sonetista Jayme Azancot e Judith Teixeira


O sonetista Jayme Azancot e Judith Teixeira

Quando a magnífica tábua biobibliográfica sobre Judith Teixeira plasmada na não pouco esbelta edição dos Poemas[1] judithianos, sob o nome «Scriptorium» e da responsabilidade de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, adianta que no dia 8 de março de 1913 é «dissolvido o casamento de Judith com Jaime Levy Azancot, empregado comercial»[2]. Uma atinência estética entre o casal é aí omitida, certamente por falta de informação – é que este Jayme Azancot viria a colaborar, num encontro de vidas já desencontradas, na celebérrima revista Contemporanea, «feita expressamente para gente civilizada» e «feita expressamente para civilizar gente». Tal acontece no seu nº 8, já depois de dois contributos de Judith Teixeira no ano anterior, por 1922, quando por lá fez publicar o sonetilho «Fim»[3], escrito em setembro de 1921, e o poema «O meu chinez»[4].
É precisamente em posição final na revista nº 8 que aparecem, em duas páginas consecutivas, os sonetos «Bucólica»[5] e «Solidão»[6] de Jayme Azancot, que transcrevo:

                                                                  BUCÓLICA

Montanhas e valados do Senhor
Aonde nascem peregrinas flôres
E aonde se debuxam várias côres
Num concerto de luz fascinador;

Em vós tecem enredos mil de amôr
Os poetas ingénuos e os pastores
Que em suas alegrias suas dôres
Hão-de sempre a beleza eterna pôr!

Almas ingénuas, melodiosamente
Elevam maravilhas amorosas
Nas palavras que formam seus cantares.

E todo o artista que ali esteja sente
Que os canticos de amor são como rosas
Eternamente perfumando os ares.


                       SOLIDÃO

Este planalto misterioso leva
A terras idiais e nunca vistas,
Aonde as sensações mais imprevistas
Desaparecem num céu que gela e neva.

Em torno dêle uma profunda tréva
Derrama e esbate a sombra das conquistas,
E pelo céu de opalas e ametistas
O sol rubro e pagão nunca se eleva.

Que terra é esta gélida e tão nua,
Em que um bruxo desenha alegorias
Aonde canta um desespero vão?

E a tal pergunta só responde a lua,
Muito ao longe, lançando pratas frias
Pela terra sem fim da Solidão!


Cinérea também, a poesia de Judith Teixeira escrevia-se no soneto «Cinzas» e nas sombras de outra forma poética fixa de título «O palhaço». Entre janeiro e março de 1923 a solidão poética dos poemas de Azancot não o faziam chegar à casa da poesia. Um dia perto e já longe, Judith cavalgava ardentemente os castelos tristes e derruídos do silêncio por chegar. E isso era uma poesia outra, em que o fel é boca e o silêncio canto.

Viseu, 24 de agosto de 2014
©Martim de Gouveia e Sousa



[1] Judith Teixeira, Poemas. Decadência, Castelo de sombras e Nua. Conferência De Mim, Lisboa, &etc, 1996.
[2] Loc. cit., p. 228.
[3] Contemporanea, nº 2, junho de 1922, p. 29.
[4] Contemporanea, nº 6, dezembro de 1922, p. 44.
[5] Contemporanea, nº 8, fevereiro de 1923, p. 111. Conservou-se a grafia epocal.
[6] Contemporanea, nº 8, fevereiro de 1923, p. 112. Conservou-se a grafia epocal.

Monday, August 18, 2014

Álvaro Virgílio de Franco Teixeira e Judith Teixeira

Álvaro Virgílio de Franco Teixeira e Judith Teixeira

Depois de ter estado casada com Jaime Levy Azancot (*27.03.1876), filho de António Azancot (*1830), nascido em Tânger, e de Meriam Levy Benuyli (*24.06.1843), nascida em Gibraltar, ambos os pais de famílias de raiz hebraica, Judith Teixeira veio a casar no Luso, com Álvaro Virgílio de Franco Teixeira (Lisboa, São José, 13.01.1888), filho de Luís Virgílio Teixeira[1] e Zulmira d’ Almeida Franco Teixeira[2].
Ao invés de um troço assertivo de pelo menos duas décadas, quis o tempo que Judith Teixeira escrevesse o capítulo da chegada ao ponto «em que já não se diz eu»[3]. Deixemos por agora o fulgor e a recaída de um belo trajeto artístico, olhando para o desenho vital do homem e marido que veio a contribuir definitivamente para o emblema significativo da marca poética nominal – afinal, Judith é Teixeira porque casou com Álvaro Virgílio de Franco Teixeira, parecendo, sem ironia, que o primeiro elemento denominativo, de origem judaica, encaixava integralmente com o primeiro casamento havido com Jaime Levy Azancot.
Ora, o passado de Álvaro Teixeira desvela-se, por exemplo, na obra de Diamantino Calisto intitulada Costumes académicos de antanho (1898/1950), quando se contam alguns interessantes e divertidos episódios dos estudantes coimbrãos de início do século XX. Aprecie-se o quadro:
As partidas feitas e organizadas pelo Trindade Coelho[4], alma de eleição, poeta primoroso e espírito cintilante, aos companheiros de casa, marcavam pela graça e por serem inofensivas.
Contarei algumas:
O «caloiro» Álvaro Virgílio Teixeira, belíssimo rapaz, esperto, mas ainda muito inocente, dispunha de dinheiro, tendo crédito aberto na importante casa comercial Gaito & Canas[5].
Era neto do «saudoso», no dizer dos Mestres, Visconde de Seabra[6].
Apesar de ser bom estudante, lembrou-se um dia de dar umas faltas justificadas, por doença.
Pediu ao Trindade Coelho para ir chamar o Dr. Daniel de Matos[7], a fim de este lhe passar o respectivo atestado.
De que se há-de lembrar o Trindade Coelho?
Não chamar o Dr. Daniel e pregar um tremendo susto ao «caloiro».
Se bem o pensou… bem o fez.
Disse ao «caloiro» que o Reitor da Universidade, tendo-lhe chegado ao conhecimento de que ele não se encontrava doente de facto, tinha tomado todas as providências para que o Dr. Daniel não acorresse à chamada, e para que «dois Lentes» de Medicina o fossem examinar, enviando à Reitoria o respectivo relatório.
À tarde apareciam os «tais Lentes», Chico Pedro e Matos Chaves[8], alunos de Medicina, vestidos à futrica, os quais depois de um exame «circunstanciado» ao «caloiro», terminaram por declarar que ele estava… de perfeita saúde.
O «caloiro» bem se queixou de todas as doenças, mas os «Lentes», imperturbáveis, saíram, tendo cobrado, cada um, 2.500 réis.
Aflito, o «caloiro», pede então ao seu «algoz» para mandar um telegrama ao pai, a fim dele vir imediatamente.
Forjou-se um telegrama tão extenso, que importou em 2.455 réis!
Esse telegrama, escrito em papel aparte do respectivo impresso, foi substituído por outro enviado a um amigo do Trindade, no qual se pedia para ele mandar um telegrama em nome do pai do «caloiro», dizendo que a Universidade o proibia de entrar em Coimbra.
Este telegrama, também escrito em papel aparte e colado no impresso, foi devolvido com a declaração de que não podia seguir nos termos do artigo… do Regulamento dos Telégrafos.
Substituindo então este pelo primeiro, foi dito e «provado» ao «caloiro», que o seu telegrama não podia seguir por ordem da Universidade!
A aflição do «caloiro» era cada vez maior, considerando-se já com o ano perdido. O Trindade Coelho alvitrou então ao «caloiro» a necessidade, talvez salvatória, de alguém, amigo ou parente do Dr. Calisto, pedir a este toda a sua benevolência para o caso e lembrou-lhe, para isso, o sobrinho.
Posto ao corrente do que se estava passando pelo Trindade Coelho, este disse-me para ir ao quarto do «caloiro», que me pediu, quase de mãos postas, para o salvar.
Prometi-lhe que iria empregar todo o meu «valimento» junto daquele meu parente, mas que não podia garantir o êxito da minha démarche em vista do caso se me apresentar muito complicado.
À tarde, disse-lhe que tinha feito o pedido e que tinha sido atendido.
No dia seguinte reapareceram os mesmos «Lentes» que «achando-o já doente», disseram ir comunicar o facto à Reitoria.
Ao retirar-se, cobraram mais 2.500 réis, cada um, deixando-lhe o peito pintado com tintura de iodo.
O Dr. Daniel de Matos achou graça à partida e lá foi salvar o rapazinho passando-lhe o atestado.
Ao jantar, depois de se verificar que havia em cofre 12.455 réis, propuz que, em sinal de regosijo por ele não ter perdido o ano, se oferecesse uma ceia ao «caloiro».
O «caloiro», comovido, protestou energicamente, pois era a ele que «cumpria pagar».
Chegou-se contudo a este acordo: se a despesa com ceia fosse superior áquela importância, única que possuíamos, o «caloiro» entraria com o que faltasse.
Era uma hora da noite, quando eu e o «caloiro» nos dirigimos para o «João Magrinho»[9], onde já se encontravam os restantes convidados, entre os quais os «Lentes» que acompanharam à guitarra e à viola as cantadeiras do fado.
O «caloiro», só então, viu tudo…
Mas já era tarde.[10]    

Álvaro Virgílio de Franco Teixeira casou com Judith Teixeira no dia 22 de abril de 1914. Como o diz o registo de casamento[11], o consórcio ocorreu em casa do noivo, no Bussaco e das testemunhas presentes ao ato nenhuma quis ser considerada padrinho ou madrinha. Estiveram presentes: Albertina Pereira de Matos, doméstica; Sara Serra Lopes de Moraes, doméstica; Ilídio Pereira de Matos, comerciante; e Alexandre Lopes de Moraes, comerciante.
É esta a sina de Judith Teixeira – uma adstringência ao banimento, uma pulverização de tudo, uma desconsideração. E, no entanto, todos os exílios nada podem contra o verso rútilo em que vive.




[1] Natural da freguesia de Santa Justa, em Lisboa, com a profissão de proprietário.
[2] Natural do Rio de Janeiro, Brasil, e doméstica de profissão.
[3] Gilles Deleuze e Feliz Guattari, Rizoma, Lisboa, Assírio & Alvim, 2006, p. 7.
[4] Trata-se de Henrique Trindade Coelho (1885-1934), primeiramente poeta, e depois político, jornalista e diplomata. Não deve ser confundido com José Francisco Trindade Coelho (1861-1908), notável contista, didata, pedagogo e jurista, de quem era filho. Notas minhas.
[5] Lemos, por exemplo, na Gazeta de Coimbra de 18 de setembro de 1920, nº 1057, que a firma Gaito & Canas esteve estabelecida, em Coimbra, na rua (calçada) do Cego. Já o anterior 5 de Outubro de outubro de 1913 informa que a empresa coimbrã se chamava «Mercearia Lusitana», com especialidade em géneros de mercearia, materiais para construção, compra e venda de papéis de crédito, bem como seguros contra fogo. A antiguidade da casa é dada pelo telefone nº 8. Notas minhas.
[6] De facto, António Luís de Seabra e Sousa (1798-1895) veio a casar, depois do primeiro esponsal havido com a prima co-irmã Doroteia Honorata Ferreira de Seabra da Mota e Silva, com Ana de Jesus Teixeira, avó de Álvaro Virgílio de Franco Teixeira. Ana de Jesus Teixeira casava-se também pela segunda vez e fora casada com Manuel Joaquim Teixeira. Notas minhas.
[7] Daniel de Matos (1850-1921) é um reconhecido médico e professor universitário.
[8] Certamente, o futuro doutor Alfredo Matos Chaves, tantas vezes presente em celebrações e representações da academia, como encenador, ponto e caracterizador.
[9] Veja-se, v.g., Elísio Estanque, «Juventude, boémia e movimentos sociais: culturas e lutas estudantis na universidade de Coimbra», in Política & Sociedade, vol. 9, nº 16, abril de 2010, p. 266 e a referência à antiga fama do «Magrinho e os seus acepipes em cubículos de lona».
[10] Diamantino Calixto, op. cit., Porto, Imprensa Moderna, L.da, 1950, pp. 117-119. Foi mantida a ortografia do original. Este episódio foi republicado, com ligeiríssimas alterações, em 1958: Diamantino da Mara Calisto, «Chateau Rose – a minha república», in Rua Larga – Revista dos Antigos Estudantes de Coimbra, nº 9, Coimbra, 20 de janeiro de 1958, pp. 256-258.
[11] Luso, 1914, livro 4º, registo 66, Conservatória do Registo Civil de Mealhada.