O CONTRIBUTO INDIVIDUAL
JUDITHIANO NO IMAGINÁRIO CRIATIVO DE FRANCISCO MANUEL CABRAL METELLO
(1893-1979)
Interessando
aos escoliastas da coisa literária o clarão talentoso, não espanta que muitos
sujeitos da escrita sejam projetados para a margem, aí permanecendo em
incógnita sepultura até ao declínio absoluto. Estranho é, no entanto, que nessa
literatura larvar e ferrugenta se procure esconder a todo o custo, parece, o
azul da diferença e da sinceridade.
Por
exemplo, talvez não tenha mal que poucos conheçam, lembrem ou queiram lembrar
Francisco Manuel Cabral Metello[1],
também Francisco Manoel Cabral Metéllo[2],
não obstante o interesse que sempre detém o objeto literário que é, como no
caso, um importante paratexto sobre a Lisboa decadente e o inciso estilo
decadentista que foi, na literatura portuguesa, uma das faces da modernidade
(Calinescu dixit).
De
fevereiro a dezembro desse ano de 1923, e antes também antes e depois, mas tudo
muito limítrofe, percorrera Judith Teixeira um invulgar caminho de escolhos e,
seja dito, de glória. Aliás, a proscrição de Judith Teixeira tudo deve ao
invulgar exibicionismo de vontade e de não sujeição patenteado nesse ano e no
anterior. Daí ao banimento foi um instante. Lenta, a doxa literária diz já que
a ação de Judith Teixeira é força cívica e qualidade literária. Desacompanhada
dos maiores nomes, ao contrário de Metello, v.g., a agudeza judithiana descola
da margem e vira ao centro. Na complexa contratura canónica, Judith Teixeira há
muito que deixou de ser caso despiciendo ou episódio inenarrável. E junto, sem
apêndice, a republicação, por parte da Universidade de Coimbra, da coletânea Castelo de Sombras[3],
já em 2014, no âmbito da comemoração dos 500 anos da biblioteca da instituição,
integrando o livro a série II das edições fac-similadas distribuídas e editadas
em parceria pela jornal Público.
Ainda assim, um reparo: a vetusta e grave universidade optou pela obra
judithiana mais contida e, claro, de qualidade indesmentível, como todas as
outras.
Judith
Teixeira não é mais o pessoano não lugar, é antes o valor que Aquilino e outros
nela descortinaram. Lembro e relembro que não se conhece linha que defenda
Judith Teixeira da tentativa de enxovalho público vinda daqueles autores que
tinham o mesmo «corpo em pessoa», para parafrasear o magnífico título[4]
e não menos excelente livro editado por Anna Klobucka e Mark Sabine, a que
voltarei em breve. E refiro-me, claro, a Botto, Pessoa, Raul Leal e, por que
não, Francisco Metello, bem ativos nessa época na passividade perante o ataque
à sexualidade e à capacidade literária de Judith Teixeira.
Não
me parece que ande arredada desta polémica a postulação, colhida em Anna
Klobucka e Mark Sabine, segundo a qual a vindicação social pessoana da
homossexualidade masculina visava «posicionar o homossexual masculino no
vértice mais elevado, e não no dúbio terreno intermédio, de uma dicotomia
misógina que associa a masculinidade à cultura e a feminilidade com a natureza
e o tipo de sexualidade que põe em risco o progresso cultural»[5].
E este parece-me ser o ângulo exato da inação dos escritores epocais de Sodoma
– a blague
sexista era-lhes artefacto de exclusão e sublimação.
Nada
me move contra Francisco Metello e a sua obra, que considero interessante e
exemplificativa de uma certa literatura vintista. Destaco, isso sim, o
desacordo face aos atos judicativos e valorativos expendidos a respeito de
escritores nem sempre maiores que, sendo homens, expressavam uma sexualidade
afim de umas poucas mulheres que viam a sua ação minada pelo silêncio e pelo
desprimor – vindo de dentro da literatura, a posição dominante castrava as
filhas de Safo. Mas poderia Judith Teixeira ser deslocalizada?
Metello
fez publicar em dezembro de 1923 as suas Entrevistas.
Ater-me-ei apenas ao quadro «A praga» (pp. 63-69), que é bem aferidor do pulsar
daquela década de vinte e, já agora, da irradiação judithiana. Eis alguns
pontos que destaco da pequena ficção, para rápida conclusão:
1. A novel poetisa Rachel da Fonseca
Soares escrevera um primeiro livro de rimas com o impossível título «Rebentos
d’ uma manjerona» e procurava expô-lo na montra de uma livraria moderna.
2. A caixeira, face às pretensões de
decoradora que a poetisa manifestava, exclamou «Ai, eu já não posso com estas
literatas!», no que foi corroborada pelo groom,
que complementou: «Estas alforrécas qualquer dia trazem a família toda para
expor na montra».
3. A cena dialogada contém indicações e
informações, sendo uma delas a de que uma «dama elegantemente vestida entra e
fica examinando alguns livros francezes».
4. E depois surge um principal momento
que importa reter, porque bem exemplificativo do escândalo há pouco vivido e
dos gostos epocais. É esse lance que transcrevo:
CAIXEIRA
V. Ex.ª
deseja algum «Vient de Paraitre»[6]?
DAMA
Queria Namorados[7],
tem?
CAIXEIRA
Apenas um.
DAMA
Embrulhe-o,
sim?...
CAIXEIRA
Já está.
Era d’uma fregueza que não voltou a procural-o.
DAMA
Em voz baixa. – E Decadencias[8]?...
CAIXEIRA
Foram com
as Garçones para o Governo Civil.
DAMA
Oh! Isso é
verdadeiramente inquisitorial!
CAIXEIRA
Sim, minha
senhora, uma arbitragem…[9]
Ora
a obra de Metello traz-nos, como vimos, uma poetisa relativamente fútil, com um
título quase ridículo, mais preocupada em alindar a apresentação da montra do
que certa da qualidade da obra. De literata a alforreca corre um nada e a
escritora nada pode opor a um julgamento nas costas dirigido principalmente às
mulheres como em tantos casos de literatura crítica e recensória na época. Como
anteriormente, os ventos de França dominavam o país e face a uma literatura de
literata propõe o autor a vocação gaulesa. Ressalvo, no entanto, a
caracterização de inquisitorial e arbitrária a apreensão dos exemplares de Decadência. O resto e outras conclusões
são precisamente o que já ficou dito atrás sobre a associação da masculinidade
à cultura e a assunção por parte dos homossexuais homens desse primado.
A
tragédia judithiana tomou, pois, o imaginário de Francisco Manuel Metello.
Parece ainda que muito falta escrever sobre outras contradições e múltiplos
receios que são ainda parte de nós.
Viseu, 2 de
setembro de 2014
© Martim de Gouveia e Sousa
[1] Autor de
Sáchá. Comentários á vida moderna,
Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923.
[2]
O mesmo escritor da nota anterior, autor de Entrevistas,
Lisboa, Portugália Editora, 1923. Esta obra integra, na parte final, «Uma
carta» (pp. 183-186) de Aquilino Ribeiro e umas «Palavras» (185-188) de
Fernando Pessoa.
[3]
Castelo de Sombras conhece, até ao
momento, as seguintes edições: Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923; a
inserta em Poemas, Lisboa, &etc,
1996; e a fac-similada supramencionada.
[4]
Refiro-me ao livro de Anna M. Klobucka e Mark Sabine (eds.), O corpo em Pessoa. Corporalidade, género,
sexualidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.
[5] Anna M.
Klobucka e Mark Sabine, op. cit., p.
43.
[6]
Forma eivada da francesia epocal que dominava as estratégias editoriais. Lembro
que Judith Teixeira foi ridicularizada por Amarelhe n´ O Sempre Fixe, em 1926, sob a intitulação «Viande de paraitre»,
onde um desenho da poetisa desnuda, com um revólver apontado à cabeça («pim»),
encabeça um poema de título «A bailarina côr de sangue»: «Ela pena, /
entornando suor, / A desfazer-se em banha, / Um sonho de volupia / Logo ali se
desfaz / Em franca gargalhada / Ao vê-la desgrenhada, / E ela passa / Fulva,
anafada, indecente, / Flôr do vício /
Espapaçando graxa / Na agua
gordurosa / Que ela sua / Como chouriça ardente, / Infernal e langorosa / … Toda nua… / Toda
nua!...».
[7]
Alusão ao livro de grande êxito da poetisa Virgínia Victorino. De facto, Namorados teve uma 1ª edição em 1921
(Lisboa, Ofic. Ilustração Portugueza), embora a página de rosto assinale 1920,
a que se seguiram, no mesmo ano, uma 2ª (Lisboa, Ofic. Ilustração Portuguesa) e
uma 3ª (Lisboa, Ofic. da Sociedade Nacional de Tipografia);uma 4ª edição em
1922 (loc. cit.); e outras, vindo o
título a perfazer catorze edições em 1943.
[8]
Trata-se do primeiro livro de Judith Teixeira, Decadência, que conheceu em 1923 duas edições, a 2ª acabada de
imprimir aos 28 de dezembro de 1923 e a 1ª praticamente destruída pela sanha
persecutória dos guardiões da moralidade nesse início de 1923. Garante a
excelente edição da &etc que a edição de fevereiro de 1923 se
perdeu. Ora isso não é bem verdade – eu possuo uma e até já tive outra, que
cedi porque muito me pediram.
[9]
Francisco Manoel Cabral Metéllo, Entrevistas,
Lisboa, Portugália Editora, 1923, pp. 67-68.
1 comment:
As Garçonnes que "foram para o governo civil" é uma alusão ao livro de Victor Marguerite, La Garçonne, que também foi apreendido em livrarias lisboetas em 1923, por imoral.
Cumprimentos,
José Barreto
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