Tuesday, September 02, 2014

O CONTRIBUTO INDIVIDUAL JUDITHIANO NO IMAGINÁRIO CRIATIVO DE FRANCISCO MANUEL CABRAL METELLO (1893-1979)


O CONTRIBUTO INDIVIDUAL JUDITHIANO NO IMAGINÁRIO CRIATIVO DE FRANCISCO MANUEL CABRAL METELLO (1893-1979)

Interessando aos escoliastas da coisa literária o clarão talentoso, não espanta que muitos sujeitos da escrita sejam projetados para a margem, aí permanecendo em incógnita sepultura até ao declínio absoluto. Estranho é, no entanto, que nessa literatura larvar e ferrugenta se procure esconder a todo o custo, parece, o azul da diferença e da sinceridade.
Por exemplo, talvez não tenha mal que poucos conheçam, lembrem ou queiram lembrar Francisco Manuel Cabral Metello[1], também Francisco Manoel Cabral Metéllo[2], não obstante o interesse que sempre detém o objeto literário que é, como no caso, um importante paratexto sobre a Lisboa decadente e o inciso estilo decadentista que foi, na literatura portuguesa, uma das faces da modernidade (Calinescu dixit).
De fevereiro a dezembro desse ano de 1923, e antes também antes e depois, mas tudo muito limítrofe, percorrera Judith Teixeira um invulgar caminho de escolhos e, seja dito, de glória. Aliás, a proscrição de Judith Teixeira tudo deve ao invulgar exibicionismo de vontade e de não sujeição patenteado nesse ano e no anterior. Daí ao banimento foi um instante. Lenta, a doxa literária diz já que a ação de Judith Teixeira é força cívica e qualidade literária. Desacompanhada dos maiores nomes, ao contrário de Metello, v.g., a agudeza judithiana descola da margem e vira ao centro. Na complexa contratura canónica, Judith Teixeira há muito que deixou de ser caso despiciendo ou episódio inenarrável. E junto, sem apêndice, a republicação, por parte da Universidade de Coimbra, da coletânea Castelo de Sombras[3], já em 2014, no âmbito da comemoração dos 500 anos da biblioteca da instituição, integrando o livro a série II das edições fac-similadas distribuídas e editadas em parceria pela jornal Público. Ainda assim, um reparo: a vetusta e grave universidade optou pela obra judithiana mais contida e, claro, de qualidade indesmentível, como todas as outras.
Judith Teixeira não é mais o pessoano não lugar, é antes o valor que Aquilino e outros nela descortinaram. Lembro e relembro que não se conhece linha que defenda Judith Teixeira da tentativa de enxovalho público vinda daqueles autores que tinham o mesmo «corpo em pessoa», para parafrasear o magnífico título[4] e não menos excelente livro editado por Anna Klobucka e Mark Sabine, a que voltarei em breve. E refiro-me, claro, a Botto, Pessoa, Raul Leal e, por que não, Francisco Metello, bem ativos nessa época na passividade perante o ataque à sexualidade e à capacidade literária de Judith Teixeira.
Não me parece que ande arredada desta polémica a postulação, colhida em Anna Klobucka e Mark Sabine, segundo a qual a vindicação social pessoana da homossexualidade masculina visava «posicionar o homossexual masculino no vértice mais elevado, e não no dúbio terreno intermédio, de uma dicotomia misógina que associa a masculinidade à cultura e a feminilidade com a natureza e o tipo de sexualidade que põe em risco o progresso cultural»[5]. E este parece-me ser o ângulo exato da inação dos escritores epocais de Sodoma –  a blague sexista era-lhes artefacto de exclusão e sublimação.
Nada me move contra Francisco Metello e a sua obra, que considero interessante e exemplificativa de uma certa literatura vintista. Destaco, isso sim, o desacordo face aos atos judicativos e valorativos expendidos a respeito de escritores nem sempre maiores que, sendo homens, expressavam uma sexualidade afim de umas poucas mulheres que viam a sua ação minada pelo silêncio e pelo desprimor – vindo de dentro da literatura, a posição dominante castrava as filhas de Safo. Mas poderia Judith Teixeira ser deslocalizada?
Metello fez publicar em dezembro de 1923 as suas Entrevistas. Ater-me-ei apenas ao quadro «A praga» (pp. 63-69), que é bem aferidor do pulsar daquela década de vinte e, já agora, da irradiação judithiana. Eis alguns pontos que destaco da pequena ficção, para rápida conclusão:

1.      A novel poetisa Rachel da Fonseca Soares escrevera um primeiro livro de rimas com o impossível título «Rebentos d’ uma manjerona» e procurava expô-lo na montra de uma livraria moderna.
2.      A caixeira, face às pretensões de decoradora que a poetisa manifestava, exclamou «Ai, eu já não posso com estas literatas!», no que foi corroborada pelo groom, que complementou: «Estas alforrécas qualquer dia trazem a família toda para expor na montra».
3.      A cena dialogada contém indicações e informações, sendo uma delas a de que uma «dama elegantemente vestida entra e fica examinando alguns livros francezes».
4.      E depois surge um principal momento que importa reter, porque bem exemplificativo do escândalo há pouco vivido e dos gostos epocais. É esse lance que transcrevo:

CAIXEIRA
V. Ex.ª deseja algum «Vient de Paraitre»[6]?

DAMA
Queria Namorados[7], tem?

CAIXEIRA
Apenas um.

DAMA
Embrulhe-o, sim?...

CAIXEIRA
Já está. Era d’uma fregueza que não voltou a procural-o.

DAMA
Em voz baixa. – E Decadencias[8]?...

CAIXEIRA
Foram com as Garçones para o Governo Civil.

DAMA
Oh! Isso é verdadeiramente inquisitorial!

CAIXEIRA

Sim, minha senhora, uma arbitragem…[9]
   
Ora a obra de Metello traz-nos, como vimos, uma poetisa relativamente fútil, com um título quase ridículo, mais preocupada em alindar a apresentação da montra do que certa da qualidade da obra. De literata a alforreca corre um nada e a escritora nada pode opor a um julgamento nas costas dirigido principalmente às mulheres como em tantos casos de literatura crítica e recensória na época. Como anteriormente, os ventos de França dominavam o país e face a uma literatura de literata propõe o autor a vocação gaulesa. Ressalvo, no entanto, a caracterização de inquisitorial e arbitrária a apreensão dos exemplares de Decadência. O resto e outras conclusões são precisamente o que já ficou dito atrás sobre a associação da masculinidade à cultura e a assunção por parte dos homossexuais homens desse primado.
A tragédia judithiana tomou, pois, o imaginário de Francisco Manuel Metello. Parece ainda que muito falta escrever sobre outras contradições e múltiplos receios que são ainda parte de nós.

                                                                   Viseu, 2 de setembro de 2014
                                 
                                                                             © Martim de Gouveia e Sousa

[1] Autor de Sáchá. Comentários á vida moderna, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923.
[2] O mesmo escritor da nota anterior, autor de Entrevistas, Lisboa, Portugália Editora, 1923. Esta obra integra, na parte final, «Uma carta» (pp. 183-186) de Aquilino Ribeiro e umas «Palavras» (185-188) de Fernando Pessoa.
[3] Castelo de Sombras conhece, até ao momento, as seguintes edições: Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923; a inserta em Poemas, Lisboa, &etc, 1996; e a fac-similada supramencionada.
[4] Refiro-me ao livro de Anna M. Klobucka e Mark Sabine (eds.), O corpo em Pessoa. Corporalidade, género, sexualidade, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.
[5] Anna M. Klobucka e Mark Sabine, op. cit., p. 43.
[6] Forma eivada da francesia epocal que dominava as estratégias editoriais. Lembro que Judith Teixeira foi ridicularizada por Amarelhe n´ O Sempre Fixe, em 1926, sob a intitulação «Viande de paraitre», onde um desenho da poetisa desnuda, com um revólver apontado à cabeça («pim»), encabeça um poema de título «A bailarina côr de sangue»: «Ela pena, / entornando suor, / A desfazer-se em banha, / Um sonho de volupia / Logo ali se desfaz / Em franca gargalhada / Ao vê-la desgrenhada, / E ela passa / Fulva, anafada, indecente, / Flôr do vício /
Espapaçando graxa / Na agua gordurosa / Que ela sua / Como chouriça ardente,  / Infernal e langorosa / … Toda nua… / Toda nua!...».
[7] Alusão ao livro de grande êxito da poetisa Virgínia Victorino. De facto, Namorados teve uma 1ª edição em 1921 (Lisboa, Ofic. Ilustração Portugueza), embora a página de rosto assinale 1920, a que se seguiram, no mesmo ano, uma 2ª (Lisboa, Ofic. Ilustração Portuguesa) e uma 3ª (Lisboa, Ofic. da Sociedade Nacional de Tipografia);uma 4ª edição em 1922 (loc. cit.); e outras, vindo o título a perfazer catorze edições em 1943.
[8] Trata-se do primeiro livro de Judith Teixeira, Decadência, que conheceu em 1923 duas edições, a 2ª acabada de imprimir aos 28 de dezembro de 1923 e a 1ª praticamente destruída pela sanha persecutória dos guardiões da moralidade nesse início de 1923. Garante a excelente edição da &etc que a edição de fevereiro de 1923 se perdeu. Ora isso não é bem verdade – eu possuo uma e até já tive outra, que cedi porque muito me pediram.
[9] Francisco Manoel Cabral Metéllo, Entrevistas, Lisboa, Portugália Editora, 1923, pp. 67-68.

1 comment:

ZeBarreto said...

As Garçonnes que "foram para o governo civil" é uma alusão ao livro de Victor Marguerite, La Garçonne, que também foi apreendido em livrarias lisboetas em 1923, por imoral.
Cumprimentos,
José Barreto