Errores e lugares-comuns sobre Judith Teixeira: o caso de Portugal século XX. Crónica em imagens
(1920-1930), de Joaquim Vieira
Abundam no conjunto de textos referenciais e de
literatura crítica, em boa parte da produção cinzenta e, algumas vezes até, em manuais
e livros escolares, clamorosas gralhas e informações mais lesivas do que
quaisquer omissões. Não indo longe, lembro a famigerada entrada da Grande enciclopédia portuguesa e brasileira
sobre José Régio, dando-o nascido em 17 de setembro de 1899[1].
Ora o ano de nascimento de José Régio, como se sabe, é 1901. A clamorosa falha
é gravíssima, fazendo recuar Régio de um século, lev ando durante tempo que não
pode ser aferido a que muita e muita gente, fazendo profissão de fé da «lei
enciclopédica», labore em erro inconscientemente.
Não são abundantes os escritos sobre Judith
Teixeira, infelizmente. E, no entanto, há inúmeros reparos a fazer sobre o que
se tem dito. Por exemplo, neste volume[2]
sobre a década de vinte, inscrevem-se, na página 76, informações claramente
erradas e até afirmações de teor discutível. Diz Joaquim Vieira:
O resultado de tudo
isto[3]
são «imagens femininas androgínicas, viciadas, insatisfeitas, retocadas,
artificializadas, desconcertantes – brinquedos dispendiosos», que a revista Europa vê em 1925 nas casas de chá do
Chiado.
Mas, para lá dos
rituais da futilidade, as mulheres começam agora a participar activamente na
vida intelectual e artística. Emergem nomes que se tornam conhecidos, como o da
poetisa Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, ou o da pintora Sarah
Afonso, que casa com Almada Negreiros. Judith Teixeira (ou «Lena de Valois»),
amiga do casal Negreiros, é o paradigma da mulher livre da época, como reflecte
nos títulos de ousadas obras poéticas: Amorosa,
Sinfonia pagã, Meus vícios, Decadência, Nua, poemas de Bizâncio. [4]
Não
deveria o autor, no caso do primeiro parágrafo, informar que a revista Europa era dirigida por Judith Teixeira,
o tal «paradigma da mulher livre da época» como Vieira dirá à frente? Não
deveria ainda, face a isso, matizar o significado do excerto, que aparece com
um tom crítico não compaginável com o espírito Judithiano? Parece-me que sim.
Agora
vem o pior: atribuir a autoria dos três primeiros títulos elencados no segundo
parágrafo é desconhecer, de todo, Judith Teixeira. E mais: é rasurar a também
grande poetisa que foi Beatriz Delgado, que é, de facto, a autora das obras. Amorosa[5],
Sinfonia pagã[6]
e Meus vícios (Confissões)[7]
não integram a obra de Judith Teixeira. A convocação da poetisa, no entanto, não
deixa, pesem embora as contingências referidas, de ser mais um contributo para
a inscrição da escritora no centro literário.
Sem
sussurro ou clima de pétreo museu, a verdade impõe-se e não há bicos de pés que
a calem.
Viseu, 5 de setembro
de 2014
© martim de gouveia
e sousa
[1]
Cf. op. cit., volume XXIV, Lisboa –
Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, s.d., p. 808. O erro não
aparece na corrigenda final. A clamorosa falha é espantosa, uma vez que a
enciclopédia é colaborada por gente grada e reputada. Tratando-se sempre de
entradas não assinadas ou subscritas, o dedo acusador deve ser dirigido para
esse todo abstrato que é a Enciclopédia!
[2] Joaquim
Vieira, Portugal século XX.
Crónica em imagens (1920-1930), Lisboa, Círculo de Leitores, 1999.
[3]
O autor refere-se aqui às necessidades cosméticas das senhoras e à profusão de
revistas femininas na década de vinte.
[4] Id., ibid.,
p. 76.
[5] Beatriz
Delgado, Amorosa, Lisboa – Rio de
Janeiro, Portugália Editora, s.d. [1921].
[6]
Beatriz Delgado, Sinfonia pagã, Lisboa
– Rio de Janeiro, Portugália Editora, 1925. O livro conheceu, neste mesmo ano,
mais duas edições.
[7] Beatriz
Delgado, Meus vícios (Confissões),
Lisboa, Editores: J. Rodrigues & C.ª, 1926.
1 comment:
Muito, muito bom!
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