Sunday, December 24, 2017

Judith Teixeira nos cem melhores poemas portugueses dos últimos cem anos de José Mário Silva


Não sei se será assim, isto é, sei que não é assim. No entanto, conta muito esta inclusão de Judith Teixeira nesta antologia poética de cem anos. O poema escolhido, «O fumo do meu cigarro», é isso, não mais do que uma escolha. Entronizado, o poema olha agora o restante corpus e sorri - na voragem, quantas pérolas judithianas de mais claro brilho? Várias, pois...
[José Mário Silva (org.), Os cem melhores poemas dos últimos cem anos, Lisboa, Companhia das Letras, 2017, pp. 119-121.] 

Saturday, December 23, 2017

"JUDITH TEIXEIRA: O CORPO INSÓLITO" in «JUDITH TEIXEIRA: ensaios críticos»





JUDITH TEIXEIRA: O CORPO INSÓLITO

Martim de Gouveia e Sousa
ESAM – Escola Secundária Alves Martins (Viseu)

resumo
Violentando o tempo e o espaço consentido como um programa de libertação, Judith Teixeira afirma desde o início da década de vinte do século passado ter direito ao corpo e à palavra literária. Marcando pelo insólito os caminhos da subversão das representações do mapa corporal, dizendo-se sujeito sem sujeição e corpo impresso, Judith Teixeira é e continuará a ser resistência, fulgor e perenidade.

palavras-chave: modernismo literário português – Judith Teixeira – corpo e transformação - perenidade

Eu já estive preso umas vezes em condições decerto menos honrosas – (1) por causa do meu sexo, coisa ilegal, por enquanto. E sempre me perguntei à entrada e à saída, como é possível que haja gente no mundo capaz de achar um sexo coisa ilegal!
(1)   Parece.
Mário Cesariny[1]


0.                      Quando Manuela Amaral, cerca de um ano depois da morte de Judith Teixeira, vê publicados na revista ilustrada Selecções Femininas[2], publicação de grande voga dirigida por Berta de Sá, dois poemas retirados do seu primeiro livro Madrugadas (1957), fazia inscrever, certamente por casualidade significante, uma marco geodésico sobre o ocaso de uma poetisa denegada pela instituição literária, assinalando no passo uma estrada que era testemunho e denegação – concentrando como poeta nascente, na exuberância dos vinte cinco anos, a tradição decetiva sobre a assunção do corpo criador e criado que Judith legava, Manuela Amaral assumia o risco do silêncio e da incompreensão. Mas abraçava o testemunho com a sua condição e com uma voz ousada e, talvez por isso, treslida, à época. Quem poderia, pois, compreender naqueles poemas da coluna «Folhas Soltas», os versos clamando por «Um amor que cegasse o próprio Mundo» e aquela pungente espera por um «Amor que não existe!!!»?!

1.                      o lugar  Violentando o tempo e o espaço, Judith Teixeira nasceu em Viseu, em 1880. Ela, a Fénix! Fénix, repito! Três vezes Fénix! Em Viseu, em voragem de dois séculos, ali por 1880 ninguém sonhava, em terra escassa de muita província, poder vir a assistir no friso cronológico a assunto de taumaturgia. Nascente, um indominável corpo, uma pletórica voz, visando ao centro, entrou no mundo para ser sujeito e não para sujeitar-se[3], para parafrasear as belíssimas lexias de Manuel Sumares. Ou então, em registo supletivíssimo, encaixe-se a vontade judithiana na perplexidade de Wittgenstein que é diagnóstico e oposição:
6. Há uma espécie de doença geral do pensamento que procura sempre (e encontra) o que se chamaria um estado mental, a partir do qual os nossos atos brotam como que de um reservatório. Assim, diz-se ‘A moda muda porque o gosto das pessoas muda’. O gosto é o reservatório mental. Mas se um alfaiate conceber um corte de vestido diferente daquele que tinha concebido há um ano, não poderá aquilo que se chama a sua mudança de gosto ter consistido, parcial ou totalmente, em fazer exatamente isto?[4]

Sem reservatório, a incisão cultural da autora de Decadência é espontânea e visceral, inscrevendo-se no corpo, com o corpo, moldando um lugar que era um lugar vindo de trás de uma pequena circunscrição.
O lugar de Judith Teixeira era isto: um território de província moldado pela aridez que assistia a um nascimento anónimo ocorrido, sem hesitações, no dia 25 de janeiro de 1880, como consta em vários documentos legais[5] Em volta, poucos anos passados, um álbum literário de nome Vizeu Illustrado chamaria à colaboração 29 senhoras[6] e 89 cavalheiros, como que abrindo um caminho para o próximo século, se pensarmos nos índices, para a época elevados, de escritoras – mais de trinta por cento. Que era, pois, o lugar, ao tempo de Judith?
Assim diz o literário álbum: «A cidade de Vizeu é uma das mais antigas de Portugal, podendo a este respeito competir com as que mais se abonam em primazia de vetustez.»[7] Antiguidade, tradição e cerca de 9000 habitantes, eis a cidade em que Judith nasceu para o mundo. Era um tempo de conselheiros e regeneradores, condes e viscondes, liceu nacional e ensino primário elementar, furtos e quadrilhas, touradas e cornúpetos, leques japoneses e cirurgiões dentistas, cortes e chapéus, sardinheiras e desvalidos. Os sítios e os lugares davam-se por nomes como Rua D. Maria Pia e Campo de Viriato, Praça de Camões e Largo da Sé, Passeio D. Fernando e Rua da Cadeia, Ribeira e Largo do Convento, e o comércio crescia à sombra da catedral, onde despontavam tipografias, agências de viagens e papelarias.
Em 1898, andava Judith Teixeira pelos dezoito anos, eis que Viseu explode num primeiro sinal: o “Theatro Folias”, estabelecido num barracão no Campo de Viriato, causava estranho alvoroço na vida familiar dos viseenses porque uma “beleza seductora” da companhia aí atraía a concorrência de cavalheiros. Assim o refere O Commercio de Vizeu de 17 de julho de 1898:
O que opera o milagre é a beleza seductora da primeira dama que traz tudo doido!
É uma mulher alta, elegante, de bellos olhos e cabellos negros, bôcca ligeiramente comprida para deixar ver um recorte lubrico e uns dentes brancos como perolas. Para melhor destacar este conjuncto de feições, que são uma verdadeira malagueta, serve-lhes de caixilho um ligeiro buço e duas encantadoras suissasinhas que parecem pintadas. E digam-nos se ha quem resista a isto?![8]  
Um quartel à frente, em Lisboa, Judith Teixeira incendiaria a casa da poesia com a coreografia da ocupação dos espaços sonegados. Emblematicamente, no rasto ovidiano, podia Pigmalião exultar, dizendo: “É um corpo!”[9]
2.                      o problema do corpo Desinserido e só acompanhado na explicitude por uma Florbela Espanca (1894-1930), uma Virgínia Vitorino (1898-1969) ou uma Beatriz Delgado (1900-[10]), o projeto artístico de Judith Teixeira (1880-1959) é literatura e corpo impresso, alicerçando a escritora o seu objetivo de afirmar uma corporalidade significativa através da disseminação de marcas subversivas e codificadas. Só por acidente que não propriamente pela quebra do rigor poético se viu Judith Teixeira envolvida na polémica da chamada literatura de Sodoma, tanto mais que, como veremos, o comum dos estranhos leitores do tempo não se apercebeu da complexa estrutura da mensagem poética e corporal inscrita, abundante de metásteses homoeróticas, e tão só apanhou a propalada pele de «desavergonhada» por alguns versos mais explícitos. Não fosse a reação musculada de Pessoa defendendo apenas os seus amigos homens e talvez este episódio de moralidade e costumes fosse menos conhecido.
Vestindo e desvestindo a pele, mostrando e escondendo mostrando, a poesia de Judith Teixeira apresenta um corpo insólito, mutante e diferente, que vai assumindo vertentes teratológicas e excecionais. Há, nesta estratégia de fechar e codificar para mostrar os foros de sexualidade desejados (intensos e mostrativos quadros homoeróticos), uma vivência interior, escrutinada por entendedores, que é, de algum modo, para usar o título de uma coleção de consagrados ensaios de Slavoj Žižek[11], uma metástase do gozo que permite que o sujeito poético seja o que não é e, desmultiplicando-se, se assuma como sujeito conduzindo um programa de libertação e assunção. Edificando-se, construindo-se sempre, a poesia advinda de um eu lírico consciente e assertivo continuará, assim, a procriar dentro de «casa da beleza» que Walter Pater[12] tão bem assinalou e inscreveu desde há muito no novo, já velho, cânone literário.
Na necessidade de ser apenas ela própria, rompendo com enganos e falsidades, a escritora portuguesa debatia-se também com as incisivas palavras que Virginia Woolf fixaria, um pouco à frente, num discurso proferido em 21 de janeiro de 1931 para a  National Society for Women’s Service, sob o título “Professions for Women”. Assim dizia a intelectual inglesa: “ Indeed it will be a long time still, I think, before a woman can sit down to write a book without finding a phantom to be slain, a rock to be dashed against.”[13] Reclamando-se do corpo, sendo-o, Judith Teixeira não poderia ainda ser exemplo para Woolf. Mas foi um exemplo, como o comprova esta página sobre o corpo.
2.1.                corpo esquecido[14] Perto, demasiado perto da dor («Eu ando tão cansada de sofrer», D), sofrendo, porque vivendo ao lado, fora do projeto amoroso escolhido, tantas vezes isolado («tão sem ninguém», D[15]), o sujeito lírico apaga-se para mostrar o seu drama («Sou a amargura em recorte / numa sombra diluída.», D.). Banido, expulso, o corpo poético vive os rituais do esquecimento e decanta a sua exclusão em azedo sofrimento: “Fechei os olhos febris / macerados, espavoridos… - / Nem a própria Morte os quis!” (D.).
2.2.                corpo queimado[16] Atirado às chamas («Ando a queimar-me», D), o corpo do sujeito emissor mostrará o que não mais poderá ser apagado – a marca inconsútil de uma opção erótica. Ainda assim, a dispersão e o fingimento convenientes, simbolizados na pele intocada, continuam a constituir obstáculo e cortina. Afinal, quem pode ver a «Vida de eterno conflito» (D) sem ver a pele reversa queimada ou os “olhos em fogo” (D.), assinalando um outro amor? Tal deformação da pele queimada, sopesada por José Gil a propósito de certos contos populares, tem aqui plena aplicabilidade. Assim diz o filósofo: «A pele (que se despe ou veste, ou que frequentemente se queima) é a própria monstruosidade.»[17]  Decantam-se pelo corpus judithiano, em acúmulo, lexias como “reflexos de fogo”, “ardente”, “encandescido”, “abrasava” ou “inferno” que retiro de Decadência, em modo exemplificativo.
2.3.                corpo aprisionado Afirmando-se por via cordial «um triste prisioneiro / dentro dum cárcere maldito!» (D.), o corpo do emissor lírico aparece bloqueado, mostrando, nessa opacidade, uma limpidez significativa – o aprisionamento afirma, inelutavelmente, a liberdade relacional, o grito de revolta e a alegria breve da mudança. Mesmo atado, o sujeito revolta-se e afirma o lugar que não quer, em claros desejos evasivos (“Foge-me tudo, que eu procuro e quero!”, D.). Admonitória, a voz poética inscreve o aprisionamento e as inibições, deixando-nos à porta da superação, como acontece no único poema que usarei que não é da primeira coletânea poética de Judith Teixeira (tudo neste ensaio assume a vontade da exemplificação e a certeza da incompletude) – refiro-me à primeira composição de Castelo de Sombras, “Ninguém”, e à última estrofe: “Encontro apenas / o tumultuar dum coração / aprisionado dentro do meu peito / aos saltos como um louco.”
2.4.                corpo visceral Na poesia de Judith Teixeira, os corações aparecem esfacelados e sangrantes (v. g., «Ó meu esfacelado coração!» e “são corações a sangrar…”, em D.), os olhos emurchecidos (“os olhos roxos como um lírio”, D.) e macerados (“meus olhos macerados”, D.), os corpos ensanguentados (“E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, ensanguentadas!”, D.), os nervos em rutura (“Nem sentem os meus nervos estalar!”, D.), deflagrando-se em tensão nevrótica (“nervos delicados” e “Trago nos nervos a morte!”, D.). Outras vezes, a metamorfose visceral assume a pregnância do exangue, como acontece, verbi gratia, nos versos “Ficou-me o peito a sangrar, / da chaga onde me roía, a Hidra” e “boca exangue” (D.), ou, de outro modo, assume o corpo um ritmo transbordante (“Sinto latejar as veias”, D.) e incontido, avançando até ao esmagamento (“depois esmaguei / o coração”, D.).
2.5.                corpo enlouquecido Mutante, um corpo assim vai assumindo esgares significativos e marcas corporais que são símbolos de diferença e afirmação – como uma placa de trânsito, as palavras mostram e assinalam: «Sou o Castigo fatal / dum negro crime ancestral, / em convulsões de loucura!» (D.). Perto do paroxismo, o corpo entrega-se ao estridor dos sentidos: “A rubra dor / do sensualismo, / no ardor / de cada paroxismo…” (D.). Tal propensão, diga-se, é estratégica e visa instalar a diferença, como se o sujeito poético quisesse dizer ‘isto não é isto’ ou ‘nem só o que é visto como normal é normal’. Ouça-se, no encaixe, Mikhaïl Bakhtine, uma das maiores figuras críticas do grotesco:
Le motif de la folie, par exemple, est três caractéristique de tout grotesque, puisqu’il permet de poser sur le monde un regard différent, non troublé par le point de vue “normal”, c’est-à-dire par les idées et les appréciations communes.[18]
E assim o corpo, em tensão especular, é marca, sinal infungível que se revela pela deformação.
2.6.                corpo incarnado Descentrado, sem focalização, o corpo do sujeito poético evola-se e transforma-se, outrando-se («Eu sou a alma penada / de outra que foi desgraçada!», «Achei-me dentro de ti.» ou “aquela que vive em mim”, D.). Projeta-se até para fora de si, nesse exterior plasmando as íntimas metamorfoses, como acontece, por exemplo, no poema “O anão da máscara verde», nos versos “O silêncio fala / balançando os esguios esqueletos / das árvores desgrenhadas!” (D.) ou na presença de “um fulvo anão, de máscara verde” (D.).
2.7.                corpo oblato Dando-se, sendo bandeira, o selo do homoerotismo levanta-se do texto e presentifica-se em explicitude das palavras textuais: «deixa-me sonhar… / Delirar» (D.). Entrega-se ainda o corpo ao curso vivencial, sendo dádiva e libertação: “- E eu tenho uma enorme sede de viver!” (D.). Acontece até que tal oblatividade pode aparecer, pontualmente, sob o signo da evasão e da transmigração: “sempre me traz ao sentido / o corpo abandonado / da favorita dum Radjah!” (D.).
2.8.                corpo evadido Negado o presente, embora sabiamente assinalada a impossibilidade, é o passado uma junção ancestral para onde o corpo do sujeito poético se projeta («eu fui talvez no passado…», D.), evadindo-se de um presente castrador e mesquinhamente modelar (“fujo levando / o meu Chinês comigo!/ […] realizar / as horas sensuais, / as horas delirantes / com que eu sonhei…”, D.) . Clamando, clamando sempre o sujeito lírico judithiano declara: “Quero fugir a este inferno!” (D.). Em abismo, o corpo negado devém loucura e inconsciência: “Anda a loucura a desgrenhar-            -me  - / o corpo e o pensamento…” (D.) ou então, libertando-se, devém o sujeito poético um ser finalmente assumido, evadido sem dor de prisões atávicas, como o comprova a belíssima estância da composição “Liberta”: “Noutros cenários a minha alma vive! / Outros caminhos… / Por outras luzes iluminada! / - Eu vim daquele mundo onde estive, / tanto tempo emparedada…” (D.). Este desejo afirmativo de verticalidade e verdade assume-o o sujeito poético no fascinante e emblemático derradeiro poema de Decadência intitulado “Última frase”: “Minha alma ergueu-se para além de ti… / Tive ânsia de mais alto / - abri as asas, parti!”
2.9.                corpo iluminado Deflagrando pelo avesso da pele a força erótica de um emissor lesbianista e cultor de uma erótica pouco aceite, não ousa a malha textual silenciar uma legítima opção de amor. Assim acontece, por exemplo, no “escandaloso» e belíssimo poema “A Estátua” (D.), que Luís Manuel Gaspar[19] brilhantemente ilustrou em 1996 para um artigo de António Manuel Couto Viana, se pensarmos na entrada “O teu corpo branco e esguio / prendeu todo o meu sentido” ou no explicit “Tens nos seios de bicos acerados, / num tormento, / a singular razão dos meus cuidados!”. Ou então, no poema “Ao espelho” de Decadência os versos “procura ir beijar / o seio branco e erguido”.  Ou ainda estoutro, de título “Venere Coricata”, que permite colher o último verso “o seio nu, de bicos enristados!” (D).
2.10.            corpo sacrificado  Ascendentes, todas as limitações, frustrações e impossibilidades confluem para um quadro onde os inconseguimentos conduzem à delapidação e ao sacrifício do corpo. Assim acontece, por exemplo, no poema “Rosas vermelhas” (D.), onde o sujeito poético desvela os seus ritos punitivos, defluentes dos mundos real e onírico: “Toda a noite me piquei / nos seus agudos espinhos!”. Como agudos signos, as cores são ainda “farpantes” (D.). Outros cravejamentos, todavia, despontam aqui e além, sendo valiosa clave aquele fecho do soneto “Madrugadas”: “E num frémito de louca / cravava na tua boca / um beijo rubro de sangue!”. Mas não só: os nervos quebram-se “como cordas ressequidas” e a pele enfrenta “mordeduras / de bocas encandescidas!” (D.).
2.11.            corpo narcísico Como um espelho, assim o corpo e os seus desejos e pulsões. Encontram-se na poesia de Judith Teixeira momentos de autoerotismo que revelam a topografia do olhar e da sexualidade. Recriando o mito de Narciso, o sujeito emissor reflete-se e observa-se no espelho: “Meu lindo corpo de Leda, / fascina-me, enamorada / de todo o meu próprio encanto…” (D.) ou “Os meus magoados beijos / encontram sempre a própria boca / banhada de luar / álgido e frio”. Veja-se ainda que a riquíssima última exemplificação permite, em simultâneo, assinalar a preferência homoerótica e a frieza recetiva da sociedade que não tolerava “desvios” ou “diferenças”.
2.12.            corpo teratológico Monstruoso o tempo que assim se fechava para uma voz quase única em tempo do fim. A década de vinte do século XX, afinal, ressumava de impossibilidades e sonhos, que se queriam reais, estranhamente delapidados por uma República agonizante e distante das promessas feitas às mulheres. No ínterim, a polémica sobre a dita “literatura de Sodoma” tornava o ar irrespirável. Asfixiados e controlados, o(s) corpo(s) poético(s) de Judith Teixeira era(m) uma esplendecência fabulosa. A doxa societária, incisiva e formatada pela conveniência, isolou a poetisa para que o seu caso se visse melhor na sua nudez teratológica. Como codiciosamente o diz Jean-Jacques Courtine, a história dos monstros “é também a dos olhares que recaíram sobre eles, dos dispositivos materiais que inscreviam os corpos monstruosos num regime peculiar de visibilidade, dos signos e das ficções que representavam, mas também a história das emoções sentidas perante a disformidade humana.”[20] Destacando o objeto, os condutores dos ritos sociais lançam no quotidiano aquilo que sentem ser anormal, para assim poderem mostrar as normas e os bons costumes. Como diria um José Gil o monstro “é pensado como uma aberração da ‘realidade’ (a monstruosidade é um excesso da realidade) a fim de induzir, por oposição, a crença na ‘necessidade da existência’ da normalidade humana.”[21]
E é assim neste contexto de um ser teratologizado que topamos, como estratégia semiótica, com um corpo desvelando-se em alongamentos (“dedos esguios”, “nos braços longos e finos”, “braços desgarrados” e “mãos, esguias e nevróticas”, v. g., em D.), metamorfoses cromáticas (“Doirado, fulvo, desmaiado / e vermelho, / tem reflexos de fogo o meu cabelo!”, “olhos roxos” ou “Dizem que eu me embriago toda em cores”, D.), alterações (“encontro no meu todo, um ar perverso…”, D.), estranhizações (“o meu ser estranho e ardente…”, D.), singularidades (“ao meu perfil incoerente / e singular…”, D.), bestializações (“na boca, felinos dentes // felinos e aguçados, / lembravam lobos hiantes”, D.), estilizações (“E as minhas mãos estilizadas”, D.), esmagamentos (“e eu fico desfeita, exangue!”, D.) e outras representações que são máscara, codificação e ocultação, mas também revelação e amplificação. Teratologia, subversão, caráter grotesco, eis apodos nominais que fazem o nome de Judith Teixeira. Ainda assim, no “desequilíbrio” corporal da nossa escritora, há um impulso estético que individualiza o mero grotesco: é que se, por um lado, na criação judithiana abundam inusitadas e complexas figurações objetais e sentimentais, por outro, sempre ressumam nos textos da intelectual sinais de uma perfeita verticalidade, que se presentificam no vezo assuntivo (pense-se na pregnância do eu discursivo desde as epígrafes de Decadência) e na pose erétil (objetos esguios, dedos e braços longos e finos, etc…). Tal captação estratégica, afirmativa da insujeição corporal e sexual, permite que vejamos nesses artifícios gestuais e posturais, no sentido de Bachelard, “une somme de la pensée et du rêve”[22] da mulher literária. Continua, do meu ponto de vista, a ser necessário “olhar para lá do sentido imediato para poder descobrir a ‘verdadeira’ significação, que está oculta”[23]. E que se desvela, querendo-o nós, em trajetos surrealizantes e em resultados decorrentes de uma lógica da sensação que permite uma aproximação figurativa entre o mundo judithiano e as figuras plasmadas pelo pintor Francis Bacon. De facto, e no sentido de Deleuze em relação a uma certa particularidade de Bacon, há no palco poético de Judith Teixeira um movimento outro que se acrescenta, proteticamente, ao corpo existente. O diagnóstico é do pensador francês, aplicando-o eu, reverencial, à produção judithiana. Ouça-se:
      Mas o outro movimento, que coexiste evidentemente com o primeiro, é pelo contrário o da Figura em direção à estrutura material, em direção à superfície lisa. Desde o início, a Figura é o corpo, e o corpo tem lugar dentro do recinto do círculo. Mas o corpo não espera apenas algo da estrutura, espera algo em si mesmo, faz esforço em si mesmo para devir Figura. Agora, é no corpo que alguma coisa se passa: o corpo é fonte do movimento. Já não se trata do problema do lugar, mas antes do acontecimento. Se há esforço, e esforço intenso, não é de modo algum um esforço extraordinário, como se se tratasse de um empreendimento superior às forças do corpo e que incidisse sobre um objeto distinto. O corpo esforça-se precisamente – ou espera precisamente – por escapar. Não sou eu que tento escapar ao meu corpo, é o corpo que tenta escapar ele próprio por… Em síntese, um espasmo: o corpo como plexo, e o seu esforço ou a sua espera por um espasmo.[24]  

3.                      uma conclusão Ainda bem, e seguimos Hans-George Gadamer, que a “consciência histórica já não escuta beatamente a voz que lhe chega do passado, mas, refletindo sobre ela, recoloca-a no contexto de onde surgiu para verificar a significação e o valor relativo que contém”[25]. E o resultado é bom para Judith Teixeira. Irradiando uma aura, ultrapassando silêncios e limitações, a sua ação não cessa de nos espantar. Em volta, nomeadamente nas últimas duas décadas e particularmente na que vivemos, somam-se glosas, republicações, menções, homenagens, citações, trabalhos académicos e multímodas inscrições que só podem querer dizer que há um lugar para Judith Teixeira na literatura portuguesa. Pensando bem, o lugar estava lá, desocupado e obnubilado pelas teias da ocultação. No esquecimento ficou um grito que era metamorfose dentro do silêncio – experiente e experimentado um esplendente corpo poético operou em fisicidade até a teratologia mostrando, no sentido de Rilke, que os versos mais do que sentimentos são experiências. Sem fim, a obra de Judith Teixeira destrói-se, produtiva. E nasce, nasce todos os dias, depois de muitos dias de sono, no consonante grito de Cioran que assevera que “On ne devrait écrire des livres que pour y dire des choses qu’on n’oserait confier à personne.”[26] Assim se escreve e vai escrevendo o corpo insólito de Judith Teixeira. Marcando pelo insólito os caminhos da subversão das representações do mapa corporal, dizendo-se sujeito sem sujeição e corpo impresso, Judith Teixeira é e continuará a ser resistência, fulgor e perenidade. Di-lo, por exemplo, o dito de Omar Porras-Speck que deixo aqui como eco do fim: “Sans corps, pas de parole.”[27] Ouvir-se-á esta, vinda do centro do modernismo sáfico português, para usar a belíssima proposição do malogrado e saudoso René Garay[28]?
 










[1] Luís Amorim de Sousa (Ed.), Um sol esplendente nas coisas. Cartas de Mário Cesariny para Alberto de Lacerda, Vila Nova de Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda, 2015, p. 29.
[2] Cf. Selecções Femininas (Revista Ilustrada), Lisboa, Ano VI, nº 64, março de 1960, p. 16. Manuela Amaral é apresentada pela «revista feminina mais lida em Portugal» como «nossa prezada colaboradora». Publicam-se, por exemplo, na revista de maio de 1965 (ano XII, nº 126), os poemas «O meu quarto», «Grito no escuro», «Despeito» e «Dissemelhança», todos retirados de A cruz de pau (1965). A amostra é arrasadora: o «quarto triste / De mulher sozinha», o grito «De nunca saber / De ti» e o desmerecimento serão marca inconformativa de um sujeito poético afirmando o impossível. Rasas, as leituras nada viam que não fosse «normal». E, no entanto, o normal era aqui, no campo da sexualidade, um outro «normal». Na mesma coluna «Folhas soltas» publicará ainda Manuela Amaral os assuntivos «Rapariga» (ano XII, nº 128, julho de 1965) e «Monólogo» (ano XII, nº 131, Outubro de 1965).    
[3] Glosa-se aqui o artigo de Manuel Sumares «Quando ser sujeito não é sujeitar-se», in Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, XLV-2, abril-junho de 1989.
[4] Ludwig Wittgenstein, O livro castanho, Lisboa, edições 70, 1992, p. 87.
[5] Cf. assento de batismo, maço 16, nº 77, fl. 230 e assento de perfilhação, maço 3, nº 46, fl. 15, freguesia ocidental da Sé de Viseu, no Arquivo Distrital de Viseu.
[6] Aparecem, por ordem de publicação, Julia d’ Almeida Bahia, Clorinda de Macedo, Guiomar Torresão, Zulmira de Sá, Maria J. S. Canuto, D. Maria de Concepcion Gimeno, Amélia Janny, Guilhermina da Costa e Silva, Marianna E. R. de Azevedo, Guilhermina J. M. Costa e Silva Pinto, Maria José Furtado de Mendonça, A. Maria da Conceição Fonseca, Elisa de Mattos, Catharina Máxima de Figueiredo, Maria de Lucena, D. Maria Rita Chiappe Cadet, Rosa Martinez de Lacreta, Emília Reis, Maria do Pilar Bandeira Monteiro Osório, Ephigenia do Carvalhal Sousa Telles, Júlia de Gusmão, Emilia Motta, Adriana V. Semeda, Joaquina Carrilho, Maria Amália Vaz de Carvalho, Angelina Vidal e Eliza Curado.
[7] Vizeu Illustrado. Album Litterario colaborado por 29 senhoras e 69 cavalheiros abrilhantado com numerosas gravuras de pagina, representando vistas e monumentos da cidade e arrabaldes, s.l., s. e., 1884, p. 3.
[8] Loc. cit, p. 2.
[9] Ovide, Les Métamorphoses, Paris, Garnier Frères, Libraires-Éditeurs, 1862,  p. 384: “Dum stupet, et timide gaudet, fallique veretur, / Rursus amans, rursusque manu sua vota retractat. / Corpus erat” (Livre X, vv. 287-289).  
[10] Certamente falecida pelo Brasil, em data incerta.
[11] Refiro-me ao título As metástases do gozo. Seis ensaios sobre a mulher e a causalidade, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2006.
[12] Cf. Walter Pater, Appreciations, 1889, post-script.: «… that House Beautiful which the creative minds of all generations are always building together.»
[14] Ver, por exemplo, a quintilha «Eu ando tão cansada de sofrer» (Decadência, 1923, p. )
[15] D. refere-se sempre a Decadência, que é suficiente para as exemplificações pretendidas.
[16] Cf., v.g., o poema «Ando a queimar-me… a dispersar-me -» (D.)
[17] José Gil, Monstros, Lisboa, Quetzal Editores, 1994, p. 96.
[18] Mikhaïl Bakhtine, L’oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance, Paris, Gallimard, 1998, p. 48.
[19] Cf. Ler (Livros & Leitores), nº 35, verão 1996, pp. 79-83. Os desenhos ilustram o artigo de António Manuel Couto Viana “Judith Teixeira. Escândalo e ousadia no princípio do século”, pp. 78-83.
[20] Jean-Jacques Courtine, “O corpo anormal. História e antropologia culturais da disformidade», in Alain Corbin (dir.) et alii, História do corpo, vol. VI (Século XX. As mutações do olhar-2), Lisboa, Círculo de Leitores, 2013, p. 20.
[21] Cf. José Gil, op. cit., p. 17.
[22] Gaston Bachelard, L’air et les songes. Essai sur l’imagination du mouvement, Paris, Librairie José Corti, 1976, p. 302.
[23] Hans-George Gadamer, O problema da consciência histórica, V. N. de Gaia, estratégias criativas –          - sistemas de edição e comunicação, lda., 1998, p. 20.  
[24] Gilles Deleuze, Francis Bacon – Lógica da sensação, Lisboa, Orfeu Negro, 2011, p. 53. A última palavra da citação é espasmo. Encaixa na ocasião o evocativo terceto do poema “Venere Coricata”: “Num amplexo quimérico congida, / revolve-se na luz enrubescida, / em espasmos de luxúria, irrealizados…”
[25] Id., Ibid. , p. 19.  
[26] Cioran, De l’inconvénient d’être né, Paris, Gallimard, 1987, p. 37.
[27] Omar Porras-Speck, apud  Monique Martinez Thomas, “Le corps en question: du texte à la scène”, in Roswitta / Monique Martinez Thomas, Corps en scènes, Carnières – Morlanwelz, Lansman Editeur, 2001, p. 7.
[28] Refiro-me, obviamente, ao ensaio de René P. Garay, Judith Teixeira. O Modernismo Sáfico Português (Estudo e textos), Lisboa, Universitária Editora, 2002, livro este que tem sido relativamente deslembrado no processo de recentração canónico judithiano. Relembre-se, neste contexto, as prospetivas palavras que Garay e Raúl Romero nos legaram no belíssimo artigo “En busca del modernismo sáfico en la poesía portuguesa del siglo XX” (Dossiers Feministes 5 – La construcció del cos. Una perspectiva de gènere, Castellón de la Plana, Seminari d’Investigació Feminista – Universitat Jaume I, s.d.): “Pero Teixeira, en su condición de impasse se destaca entre este grupo ‘homosocial’ por dos razones significativas y esclarecedoras: por ser mujer y por su ‘inquietante’ proyección lesbiana. Esta doble marginalidade la coloca en un ámbito  aún más inestable que el Raul Leal y el de António Botto: Teixeira se encuentra en una posición abominable para la moral burguesa, misógina y (het)erosexista, así como para la crítica y los círculos intelectuales quienes se negaron a defender el discurso emitido por las mujeres, en voz de mujer y desde la mujer. Teixeira fue, sin lugar a dudas, una de las primeras víctimas de esse processode depuración sufrido por ele modernismo sáfico.»