A natureza humana mudou. O assunto do dia em Lisboa era reconhecer, de algum modo, que a natureza humana mudara e se desadaptara. Uma Virgínia Woolf, em frases que devieram célebres, sintetizou a emergência do Modernismo do seguinte modo: "On or about December 1910 human nature changed... All human retlations shifted - those between masters and servants, husbands and wives, parents and children. And when human relations change there is at the same time a change in religion, conduct, plotics, and literature."[1] Tal premência do lado de dentro do homem, que tem que ver com agitação, trabalho e visibilidade, e até por aí os lugares modernistas se intersectam com os modos decadentistas, no sentido até da tal sutura sem rompimento, explica-a exemplarmente um Fernando Pessoa, quando diagnosticou, num dos seus textos íntimos, existir em cada homem moderno um neuratésnico que tem de trabalhar. O asserto pessoano em epígrafe é corroborado, nas suas implicações, por um Américo António Lindeza Diogo, por exemplo, que, acentuando o cosmopolitismo do Modernismo, diz que ele é, antes de tudo, "um movimento artístico e literário cosmopolita, com a sua série literária de grandes e pequenas capitais: Paris, Berlim, Viena, Praga, Londres, Dublin, Lisboa."[2] E assim a cidade ganha óbvio interesse, porque, afinal, ela é cultura e o Modernismo que por todo o lado vinga é uma arte tendencialmente urbana, próxima de uma sociedade tecnológica e desenvolvida.[3]Estranheza, alienação e crise de valores são classificações que facilmente colam aos nossos modernistas, que viviam a poesia como um mito real. Deste modo, o Modernismo é "uma arte da crise", que, como o defende Osvaldo Silvestre, responde, no plano psicossocial, "ao imaginário tecno-científico e urbano da modernidade com uma mimese críptica, ou hipocrática, praticando para tal uma ruína da forma e consequente celebração do valor epifânico do fragmento"[4], não sendo alheios a esta panorâmica agónica traços como o esboroar do campo teológico, com o conexo engurgitamento das esferas racionais, a derrota do sujeito transcendental face à dominação nietzschiana, freudiana e darwiniana, a desolação bélica provocada pela Grande Guerra, ou o primado do cosmopolitismo sobre o tradicionalismo, vividos em conjunto ou em parte, por um sujeito que é peça funcional de um mundo frio ou, ao contrário, por um ser multifronte, estrangeiro dentro de si, olhando-se descentrado e ironicamente plural.De acordo com o código técnico-compositivo de predominância modernista, a colagem será um estratagema funcional, moderada, na abertura e vertente difusa, pelas repetições e pela disseminação de narrativas mítico-simbólicas de encaixe tectónico, a que um Eliot chamava "método mítico", gerando-se assim, num misto de ironia e de racionalidade, uma corrente de sentido.O modernismo português é animado pelo inconformismo assinalado, sendo uma "tomada de consciência cultural de uma geração desejosa de renovar a literatura e as artes portuguesas, tomando como modelo o grande movimento do vanguardismo europeu iniciado com o Manifesto futurista de Marinetti, de 1909."[5] Abraçando a modernidade activa, e um excelente exemplo dessa agilidade é o polimorfo Almada Negreiros, o Modernismo português acentua o abandono dos artefactos do passado em detrimento do novismo que o movimento artístico dialecticamente sulcava na ágora lisboeta.E foi em Lisboa, a partir de 1913, mas também em Goa, nesse mesmo ano, que se veio a formar este movimento, não sendo despiciendo, neste particular, relembrar as informações inovadoras que a lusitanista ítalo-brasileira Sandra Bagno fornece ao defender, com provas irrefutáveis, que o terminus a quo das relações da modernidade literária portuguesa com o futurismo de Marinetti deve ser reposicionado em Julho de 1913[6], por via da publicação, nessa data, da Revista da Índia , que continha, no editorial programático de Paulino Dias[7], uma nítida pregnância de influência marinettiana com o fito expresso da deflagração do renascimento cultural indiano. Sem grande discussão, é certo que, sendo ao tempo a Índia uma possessão portuguesa, a precedência goesa é um facto. No entanto, o movimento modernista lisboeta - que se começa a esboçar no mesmo ano de 1913 e adquire visibilidade em finais de Março ou em Abril de 1915, com a publicação da Orpheu , - parecia ter uma outra consistência grupal, como muito bem o faz notar Luís de Montalvor nesse número nascente: "ORPHEU, necessita de vida e palpitação, e não é justo que se esterilise individual e isoladamente cada um que a sonhar nestas cousas de pensamento, lhes der orgulho, temperamento e esplendor - mas pelo contrario se unam em selecção e a dêem aos outros que, da mesma especie, como raros e inferiores que são, esperam ansiosos e sonham nalguma cousa que lhes falta, - do que resulta um procura esthética de permutas: os que nos procuram e os que nós esperamos..."[8].O Modernismo português vivia nessa e dessa inquietação, sedento de novidade e de actualização, de demolição e de reconstrução, de inovação técnica versilibrista e de diferença ideológica, apurando-se nas liberdades vocabulares e na tergiversação sintáctica, assumindo desde logo uma estratégia de choque e provocação. "Orpheu abandonou decisivamente o idioma dos avós e inventou, para nós, a poesia moderna que ainda hoje somos"[9], diz um Eugénio Lisboa. Judith Teixeira andou por lá, mulher consoladora em território de homens feridos pelo mal orfeico da dor da perda e pela pose da arrogância e da superioridade. Sem consciência disso, no vezo oxigenante da despertação das almas adormecidas, quase ninguém viu aquela mulher fulgurante de genialidade assertiva, que partilhou conversas e gostos e amigos e escândalos e dirigiu a cosmopolita revista Europa de eco orfaico. Mas tudo isso é perfeitamente normal: também poucos se aperceberam das consequências e do valor do alarme de Orpheu. Estranho, muito estranho, é o silêncio dela, Judith, e dos profissionais da literatura, que lhe foram perdendo o rasto e cavando o por-dizer.Pessoa chegou ao público, em 1927, por obra da revista Presença. Almada, nesse mesmo ano, sai para Espanha, afirmando emblematicamente que exilada estivera uma geração dentro da própria cultura. Também Judith Teixeira se ausentou do país, em 1927, tudo indica que para Espanha, assim inscrevendo, no sopro da errância, um fim que estava perto no destino da memória próxima e uma ligação clara ao movimento modernista.Quis o destino que o tempo, "esse grande escultor", viesse alterando, laboriosamente, o injusto esquecimento. Este é mais um passo.[1] Virginia Woolf, "Mr Bennet and Mrs Brown", in Collected Essays , vol. I, London, Chatto & Windus, p. 320.[2] Américo António Lindeza Diogo, Modernismo, readymade. Notícias das trincheiras, Braga, Cadernos do Povo, 1997, p. 43.[3] Cf. Malcolm Bradbury e Janes McFarlane, Modernism. A Guide to European Literature (1890-1930), London, Penguin Books, 1991, nomeadamente o capítulo "The cities of Modernism" (pp. 96-104), assinado por Bradbury.[4] Osvaldo Silvestre, "Modernismo em Portugal", in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. 3, Lisboa, Verbo, col. 842.[5] Sílvio Castro (dir.), História da Literatura Brasileira, vol. 3, Lisboa, Alfa, 2000, pp. 84-85 (Cap. 41, "Modernismo brasileiro e Modernismo português", do mesmo Sílvio Castro).[6] Cf. Sandra Bagno, "Il futurismo a Goa e la 'Revista da Índia' ", in Rosa dos Ventos - Atti del convegno 'Trenta anni di culture di lingua portoghese a Padova e a Venezia' , Pádua, Univ. di Padova, 1994, pp. 89-102; id., "O futurismo libertário na Índia Portuguesa", in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias , Lisboa, 26 de Abril de 1995, pp. 28-29; Sílvio Castro, op. cit., pp. 86-87.[7] Sobre Paulino Dias, veja-se a informação contida em Eugénio Lisboa (coord.), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. III, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1994, pp. 149-150:" DIAS, Paulino (N. Santa Cruz, Goa, 1874 - m. Nova Goa, 1919). Poeta iconoclasta, pintor, músico e cientista, foi professor no Liceu Central de Nova Goa. Diplomado em Medicina, dedicou-se sobretudo à aplicação industrial das ciências. Usou o pseudónimo hindu de Pitri Das (Escravo do Amor).De origem indiana, este autor considerava-se como um dos descendentes dos Drávidas, o que muito contribuiu para a sua ligação com a cultura indiana e para o profundo conhecimento que possuía da sua literatura. São exemplos disso o poema Indra, o poema dramatizado Nirvana e a peça Os Párias. Mas não descurou, na sua curta vida, a literatura europeia, que muito o influenciou, sobretudo os movimentos fin-de-siècle, decadentismo e realismo. O seu livro A Lira da Ciência, 1896, é aquela em que mais se reflecte a influência de autores portugueses, especialmente de Herculano e Junqueiro. A sua obra carece de unidade artística e filosófica, pois que se encontra dispersa numa estética científica aliada a um idealismo regenerador e reformista, contra a injustiça do sistema das castas. Deixou volumes inéditos em francês, inglês e português. Entre 1909 e 1910 dirigiu o mensário ilustrado Revista Moderna. Pertenceu ao grande movimento indianista que, após a proclamação da República, viria a conquistar um lugar ao sol na burocracia e nas profissões intelectuais. Colaborou na Revista da Índia e em A Luz do Oriente.Obras principais: Vasco da Gama, poemeto, 1898; Visnhulal, 1919; No País de Súria, 1935 (edição póstuma); A Deusa do Bronze ." O carácter polimórfico desta figura cultural está ligada, por certo, ao espírito moderno, quanto mais não fosse por esse desdobramento funcional e por esse modo marinettiano de afirmação em 1913, que demonstrava, entre outras coisas, ser Paulino Dias um homem atento às vanguardas literárias.[8] Luís de Montalvor, "Introducção", in Orpheu. Revista Trimestral de Literatura., Ano I, nº 1 (Janeiro-Fevereiro-Março), Lisboa, 1915, pp. 5-6. Citado a partir da edição facsimilada da lisboeta Contexto, 2ª edição, 1994.[9] Eugénio Lisboa, Poesia Portuguesa: do 'Orpheu' ao Neo-Realismo, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa-Ministério da Educação e Ciência, 1980, p. 14.
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