Thursday, June 22, 2006

"ABC" ou o momento da festa: o rosto popular de Judith Teixeira

Félix Correia, na revista ABC de Rocha Martins, de 21 de Junho de 1923, propõe-se "oferecer ás nossas leitoras, para os cravos de papel dos seus mangericos lindas quadras que as mãos gentis dalgumas das melhores poetisas portuguesas graciosamente lhes quizeram oferecer, por nosso intermedio". Apresentando cada uma das "melhores poetisas", Félix Correia convoca o nome da poetisa viseense e, antes de transcrever a quadra judithiana, produz o seguinte enunciado: "Dona Judith Teixeira cujo ultimo livro Castelo de Sombras é um reflexo da tempestade sentimental que a agita, deu-nos esta quadra onde passa a dôce sensualidade da noite de S. João, com cravos vermelhos a encherem de sangue os mangericos e comunhões francas dos sentidos a perturbarem as almas das cachopas". Mais se acrescente que as poetisas nomeadas e que responderam ao apelo foram, para além de Judith Teixeira, Maria Madalena Trigueiros de Martel Patrício, Fernanda de Castro, Maria de Carvalho, Oliva Guerra, Beatriz Delgado e Maria Leonor Reis.
De acordo com os ritos sazonais e com o Zeitgeist de então – a década de vinte é uma época literariamente multímoda e contraditória -, Judith Teixeira mergulha no espírito do povo, derrogando pela acção a notas meramente decadentista ou modernistas, e responde à provocação de Félix Correia, oferecendo às leitoras da revista ABC , em véspera de festejos de S. João, a quadra "para os cravos de papel dos seus manjericos" que a seguir se transcreve:

Na noite de S. João,
Ao som de alegres cantigas,
Anda o luar pelas fontes
A beijar as raparigas.

Esta adesão, ainda que pontual, a uma modalidade literária de ressaibos populares e românticos, fora, portanto, dos habituais requintamento, individualismo, sumptuarismo e esteticismo, assinala uma evasão onírica e espacial, dentro do espírito fantástico da libação dissipatória e orgiástica ("Anda o luar pelas fontes / A beijar as raparigas.") e da inserção numa certa recuperação medievalista, se se pensar no peso literário da palavra 'fonte' e na simplicidade evocativa das composições dos cancioneiros medievais. Ao mesmo tempo, pese embora tratar-se de um pequeno texto, resulta evidente a carga erótica que a quadra transporta - o que é, como se tem dito, uma permanência na criação judithiana e uma abertura consentida para a dominante etapa melancólica -, assim se construindo, nessa concisão, uma literatura armadilhada pelo fogo de Eros: o quadro inscreve-se no euforismo nocturno do festejo sanjoanino e na moldura musical da alegria libatória, circunstância propícia à convocação do objecto erótico "raparigas" - das palavras mais belas, diria o insuspeito Eugénio de Andrade - e na sugestão da sujeição amorosa transportada pelos saborosos e evocativos vocábulos "fontes", de tão entranhada simbologia medieval, e "luar", simbolizando este o princípio feminino e a renovação, abrindo-se assim várias possibilidades interpretativas, nomeadamente as de incidência sáfica.
Esta quadra judithiana, no rasto da simbologia de encontro amoroso que a palavra "fonte" assume na literatura medieval, é também um encontro com a festa e com a diferença - um passo necessário que não teme a nova experiência estética, que não teme a modernidade.


2 comments:

isabel mendes ferreira said...

de como a modernidade se tinge de um fulgor...assim romântico....


um texto que lê lenta e gulosamente.


beijo. Martim.

porfirio said...

:

o luar de judith beija-nos a todos.

abraço