“Decadência”, esse livro debutante de Judith Teixeira, se titularmente parece preso ao epigonismo decadentista – e lembro que, como o diz Calinescu, o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despicienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, com a nota de ineditismo erótico e de ousadia expressional.
De facto, tal estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt (e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909)) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
A vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”.
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transformadas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” ( e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, en- sanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho, já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários. Mas não de todos...
2 comments:
e nunca do Martim....que nos não deixa ficar sem ELA. a Judith....
(mais liricamente intelectual que a Florbela...)
beijo.
texto "iluminado".
Fui desviada aqui pela memória de um piano.:)
E o que acontece é que não há muito tempo, falei da Judith Teixeira, a propósito das pouquíssimas representações do amor/eros feminino na literatura portuguesa.
Gostei muito. Não só porque já vi que aqui posso ir aprofundando o conhecimento da poeta, da qual li algumas notações básicas e alguns poemas dispersos (como já foi dito, pouco há sobre), mas também porque tenho um forte fraco pelo Decadentismo e pela pintura no geral, e gostei das aproximações feitas às artes plásticas e da indicação das “Serpentes de Água II”, do Klimt, que não conhecia. Merci bien.:)
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