LIMIARES DA ESCRITA
Decadência
(1923), de Judith Teixeira – o início da coragem literária
Uma literatura começa aqui, em Judith
Teixeira. Nascida em Viseu, pode mesmo dizer-se que nem todos os filhos da
cidade poderão deixar assim uma marca tão singular na cultura portuguesa. E, no
entanto, se a visibilidade da poetisa é cada vez mais evidente, é tempo ainda
de se perguntar se já ouviram falar de Judith Teixeira.
António Manuel Couto Viana, em 1977,
di-la-á a única mulher no modernismo português, calando as vozes dissonantes e
importantes de Régio e Pessoa. O tempo, esse grande escultor, faz agora cada
vez mais vir à tona o caráter indomável de uma voz forte e diversa, que ousou,
em tempo de impossibilidade, desafiar as conveniências da moral sexual ou coisa
que o valha, se tal existe. Depois do de Couto Viana, outros atos hermenêuticos
vieram coonestar a linha fulgurante da criação judithiana: estão aqui
implicados os nomes de Cecília Barreira, Fátima Maldonado, Maria Leonor Nunes,
Maria Jorge, Luís Manuel Gaspar, Vítor Silva Tavares, Cláudia Pazos Alonso,
Eduardo Pitta, Martim de Gouveia e Sousa (perdoe-se a imodéstia…), o saudoso
René Garay e os pósteros Alicia Perdomo, Ana Raquel Fernandes, Àfrica Riera
Ventura, Suilei Monteiro Giavara, Fabio Mario e Andreia Boia, entre outros que
a memória não lembra.
Como no poema de Dylan Thomas, cedo à
mão «ao assinar este papel», tomo o primeiro livro de Judith Teixeira (Decadência, 1923) e leio, atualizando a
grafia:
A
ESTÁTUA
O teu corpo branco e esguio
prendeu todo o meu sentido…
Sonho que pela noite, altas horas,
aqueces o mármore frio
do alvo peito entumecido…
E quantas vezes pela escuridão,
a arder na febre dum delírio,
os olhos roxos como um lírio,
venho espreitar os gestos que eu sonhei…
…………………………………………..
- Sinto os rumores duma convulsão,
a confessar tudo que eu cismei!
………………………………………….
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
num tormento,
a singular razão dos meus cuidados!
Fevereiro – Noite luarenta
922
Publicada a coletânea, calcule-se o
escândalo! O livro acabou por ser indiciado e queimado em hasta pública, na
polémica que ficou conhecida como caso da «literatura de Sodoma». Estávamos em
1923 e no ato de biblioclasmo conheceram também as cinzas Sodoma divinizada de Raul Leal e as Canções de António Botto. Iradas, nomeadamente contra Judith
Teixeira, ergueram-se as vozes acusadoras de Pedro Teotónio Pereira e Marcelo
Caetano.
Judith Teixeira nasceu em Viseu, junto à
Porta dos Cavaleiros, no dia 25 de janeiro de 1880, vindo a falecer em Lisboa,
sozinha, a 17 de maio de 1959. A escritora deixou-nos mais dois livros de
poemas, uma conferência e um volume de novelas. Em 1959, um jornal de Viseu
noticiava, pesaroso, a morte de António Botto. Sobre Judith Teixeira, nada mais
do que silêncio. E é aí que a morte procria devindo poesia. Quem vem ler Judith
Teixeira? [Correio Beirão, nº 3]
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