“A lógica de toda a censura consiste em canonizar o lícito
e ignorar ou silenciar o que não é permitido.”
(Alberto Hernando, Cunnus. Repressão e insubmissões do sexo feminino)
0. Conduzindo às chamas, as letras dizem, no sentido de Deleuze, não haver lugar para o medo nem para a esperança. A confusão instaurada desde cedo na cidade dos homens, com os jogos mediáticos e a sede de centralidade, fazem dos objectos impressos rostos sem face que conjugam o esquecimento com a “desmemória”. Ilude-se o escriba contra o fascínio ainda aurático dos dizeres que já não dizem. O arco hermenêutico dos dias sobreviventes trazem só o sal da morte e o sussurro burocrático. Ao fim da escuta, muitos dos melhores actos poéticos são ágrafos e brancos, sem borrão de tinta escurecida. No entanto, encontros e desencontros existem que cortam a algaravia citadina e são matéria legível. Ao encontro, pois, do espaço cego e do negativo-produtivo da desintegração.
1. Prospectivo, um salto no tempo leva-nos a Lisboa, ao palco das letras e à revista Contemporânea, “feita expressamente para gente civilizada” e “para civilizar gente”. Ousados, um nome desconhecido e um sonetilho abalam a pacatez da capital no ano de 1922. Judith Teixeira, outrora Lena de Valois, estreava-se verdadeiramente na faina literária, rodeada de grandes nomes (Sardinha, Almada, Sá-Carneiro, Raul Leal, Mário Saa e António Ferro são apenas alguns), aparecendo inserta no segundo número da revista modernista de José Pacheco.
Mas, quem conhece Judith Teixeira?
Quase esquecida, bem se pode dizer que Judith Teixeira é, no sentido de Luís Miguel Nava, um “olhar que a solidão vai devagar apedrejando.” Longe vai aquele dia primeiro do mês de Fevereiro de 1880 em que um indivíduo do sexo feminino, de nome Judith, nascido na Viela de S. Francisco, foi solenemente baptizado na Sé Catedral de Viseu. Neta paterna de avós incógnitos e neta materna de José Filipe e Maria Rosa, filha natural de Maria do Carmo e de pai incógnito, nascera Judith no dia 25 de Janeiro do ano mencionado e desde então aberto ficava um trajecto sob o signo do abandono e do deceptivo.
Um salto no tempo de mais de um quartel faz-nos encontrar uma Judith solteira- maior, com vinte e oito anos completos, vivendo na Rua do Arco do Carvalhão, na cidade de Lisboa. Só em 1908 a escritora veio a ser perfilhada por Francisco dos Reis Ramos, alferes de infantaria já falecido, através de acção judicial contra a mãe e uma tia, tendo o processo corrido na 5ª Vara da Comarca de Lisboa. Só então Judith dos Reis Ramos tinha direito ao nome. Em busca de um nome e de si, corre Judith Teixeira, casando-se e divorciando-se de Jaime Levy Azancot, para quase logo voltar a casar com o advogado e industrial Álvaro Virgílio de Franco Teixeira. Judith Teixeira virá a falecer em Lisboa, no ano de 1959, viúva e isolada, estranhamente sem família e sem bens, mais só do que Franz Kafka.
Regresso à década de vinte. O ano de 1922 foi para Judith Teixeira, como vimos, um período de tirocínio e de preparação para o embate de 1923. E, de facto, esse ano de 23, que é o da publicação do livro de poemas Decadência, não poderá ser dissociado da polémica da “literatura de Sodoma” que invadiu uma Lisboa cada vez mais conservadora. O fundamentalismo conservador e moralista, personificado por um conjunto de jovens integralistas chefiados por Pedro Teotónio Pereira, avança e acirra as autoridades no sentido da reacção àquilo a que eles chamavam “literatura dissolvente”. Nessa onda de incompreensão embarcam os responsáveis políticos e militares, que, sem pestanejar, ateiam a fogueira, recriando, nessa patologia ígnea, os velhos autos-de-fé de tão ingrata memória. Sodoma Divinizada de Raul Leal, Canções de António Botto e Decadência de Judith Teixeira são arrestados das livrarias e queimados publicamente junto ao Governo Civil. Pessoa defende Botto e Leal, mas nada diz sobre Judith. Aquilino Ribeiro não só defende a poetisa, como a diz “uma poetisa de valor”. Posição semelhante, no jornal A Capital, adopta um António de Monsanto, o qual, para lá de ver na apreensão do livro judithiano um “excesso de zelo”, exalta o “belo espírito de artista” da poetisa e o renovador aspecto gráfico do livro de poemas. De resto, só um silêncio comprometido e um número não desprezível de vozes coléricas, que não de leitores. E, no entanto, esse livro debutante, se titularmente parece preso ao epigonismo decadentista – e lembro que, como o diz Calinescu, o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despicienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, para que se não perca esta prova de ineditismo erótico e de ousadia expressional judithiana na década de vinte. Diz o texto:
O teu corpo branco e esguio
prendeu todo o meu sentido...
Sonho que pela noite, altas horas,
aqueces o mármore frio
do alvo peito entumecido...
E quantas vezes pela escuridão,
a arder na febre dum delírio,
os olhos roxos como um lírio,
venho espreitar os gestos que eu sonhei...
..................................................................
- Sinto os rumores duma convulsão,
a confessar tudo que eu cismei!
.................................................................
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
num tormento,
a singular razão dos meus cuidados!
Fevereiro – Noite Luarenta
1922
De facto, esta estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt ( e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909), ...) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
Tal vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”. Diz assim o poema:
Através dos vitrais
ia a luz espreguiçar-se
em listas faiscantes,
sobre as sedas orientais
de cores luxuriantes!
Sons ritmados dolentes,
num sensualismo intenso,
vibram misticismos decadentes
por entre nuvens de incenso...
Longos, esguios, estáticos,
entre as ondas vermelhas do cetim,
dois corpos esculpidos em marfim
soergueram-se nostálgicos,
sonâmbulos e enigmáticos...
Os seus perfis esfíngicos
e cálidos
estremeceram
na ânsia duma beleza pressentida,
dolorosamente pálidos!
Fitaram-se as bocas sensuais!
Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais,
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!
..................................................................
E morderam-se as bocas abrasadas,
Em contorções de fúria, ensanguentadas!
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transformadas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” (e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, ensanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho (12), já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários.
Não se fica pelo referido o virtuosismo literário de Judith Teixeira. De facto, uma outra voz coeva, que a poetisa portuguesa com toda a certeza desconhecia – e falo de Delmira Agustini (1886-1914), a cultuada pitonisa uruguaia do modernismo hispânico -, manifesta afinidades electivas, poéticas e biográficas, com Judith. Aliás, essa convergência de articulação poética já foi notada por um René Garay, que defende que a subversão das imagens consagradas é comum em ambas: o cisne de Delmira nada deve à simbologia do modernismo hispânico glosada pelo seguidores de Ruben Darío, antes se subtilizando em desejo irreprimível no poema “El cisne” do livro Los cálices vacíos (1913), o que, afinal, também acontece com Judith Teixeira nos poemas “Ao Espelho” (“e eu vou pensando, / no cisne branco e mudo / que no espelhante lago adormeceu”) de Decadência ou na composição poética “Ilusão” de Nua. Poemas de Bizâncio (1926), que é, sem dúvida, uma fulgurante exemplificação da capacidade estranhizante das imagens judithianas, com a sua pregnância onírica animada por uma belíssima criatura “esculpida em neve” que tem sobre a nudez jovem do corpo “dois cisnes erectos”. Mas esta atinência é muito mais completa, passando não só pela coincidência biográfica (apodo de sáficas, recurso ao divórcio, colaboração em revistas, rebeldia e insubmissão, silenciamento...), como principalmente por uma “technê” criadora plena de sensualidade e de inferências decadentistas, modernistas e vanguardistas (“Os meus versos não têm escola – são Meus!”, gritará Judith Teixeira, em 1926, na importantíssima conferência De Mim).
Há um caminho que quem com poder deve traçar. Passam oito décadas e meia sobre a vergonha da perseguição à chamada “literatura de Sodoma”. Nesse abismo persecutório, uma mulher de Viseu, a poetisa Judith Teixeira, que para das obras mencionadas escreveu ainda Castelo de Sombras (1923) e o livro de novelas Satânia (1927), sofreu digna e superiormente os golpes da intolerância. Em arte, as normas do pudor, essa “polícia dos enunciados que filtram as enunciações” de que fala Alberto Hernando, devem ser banidas.
Não faltando a coragem, corte-se o mal e a raiz. Espero, entretanto, não pensar por muito mais tempo naquele poema de uma mulher afegã, que Sayd Bahodine Majrouh resgatou do silêncio, e que aplico à circunstância: “Tenho na mão uma flor que murcha / Não sei a quem a dar nesta terra estrangeira”.
Como em Mishima, há um seppukar, um suicídio ritual em Judith Teixeira que foi silêncio angustiado e quase morte. Atentos, haja em Viseu um espaço para a memória e para uma “dimensão vertical” inscrita entre o corpo e o fel.
1 comment:
um enorme prazer.....Martim.
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