00. Conduzindo às chamas, as letras dizem, no sentido de Deleuze, não haver lugar para o medo nem para a esperança. A confusão instaurada desde cedo na cidade dos homens, com os jogos mediáticos e a sede de centralidade, fazem dos objectos impressos rostos sem face que conjugam o esquecimento com a “desmemória”. Ilude-se o escriba contra o fascínio ainda aurático dos dizeres que já não dizem. O arco hermenêutico dos dias sobreviventes trazem só o sal da morte e o sussurro burocrático. Ao fim da escuta, muitos dos melhores actos poéticos são ágrafos e brancos, sem borrão de tinta escurecida. No entanto, encontros e desencontros existem que cortam a algaravia citadina e são matéria legível. Ao encontro, pois, do espaço cego e do negativo-produtivo da desintegração.
0. Judith Teixeira nasceu em 1880, Régio em 1901 (1). Este lapso temporal de duas décadas, no entanto, nada significa em termos de actividade literária, até porque essa aparente décalage, no que aos dois poetas respeita, se estreita um tanto, se pensarmos nas primícias literárias de ambos.
1. Em primeiro lugar, ocupemo-nos de Judith Teixeira. Não conhecendo quaisquer textos seus anteriores a 1918, não custa acreditar nas palavras judithianas que afirmam que desde muito nova ela se sentiu vocacionada para a escrita, tendo, na sua juventude, exercitado essa “urgência de dizer” em composições ainda incipientes. Sabe-se hoje que o seu primeiro (?) texto publicado aparece pelo Jornal da Tarde nesse ano de 1918, com o título “Almas simples (Fé)” (2), um texto praticamente desconhecido mas perfeito exemplar do neo-romantismo lusitanista. Segue-se-lhe, no mesmo periódico, já no ano seguinte, uma outra narrativa breve de título “Lali...”(3), texto sugestivo da predominân- cia decadentista judithiana. Mas não se fica por aí a esquecida e interessante poetisa, colaborando em 1922, com o sonetilho “Fim”, no segundo número da revista Con-temporânea, publicação que se dizia “para novos”, a ela voltando nesse mesmo ano e em 1926, para já não falar do gorado último número em que a poetisa colaboraria com o soneto “Vaticínio” (4). Lembro, de passagem, que esta revista assinalava o fim do dito Primeiro Modernismo, não obstante as diferenças face a “Orpheu” que um Pessoa de imediato tipificou na consabida e valorativa exclamação “que diferença!” (5).
O ano de 1922 foi para Judith Teixeira um período de tirocínio e de preparação para o embate de 1923. E, de facto, tal ano, que é o da publicação do livro de poemas Decadência, não poderá ser dissociado da polémica da “literatura de Sodoma” que invadiu o palco lisboeta. O fundamentalismo conservador e moralista, personificado por um conjunto de jovens integristas chefiados por Pedro Teotónio Pereira, avança e acirra as autoridades no sentido da reacção àquilo a que eles chamavam “literatura dissolvente”. Nessa onda de incompreensão embarcam os responsáveis políticos e militares, que, sem pestanejar, ateiam a fogueira, recriando, nessa patologia ígnea, os velhos autos-de-fé de tão ingrata memória. Sodoma Divinizada de Raul Leal, Canções de António Botto e Decadência de Judith Teixeira são arrestados das livrarias e queimados publicamente junto ao Governo Civil.
Pessoa defende Botto e Leal (6), mas nada diz sobre Judith. Aquilino Ribeiro não só defende a poetisa, como a diz “uma poetisa de valor” (7). Posição semelhante, no jornal A Capital, adopta um António de Monsanto, o qual, para lá de ver na apreensão do livro judithiano um “excesso de zelo”, exalta o “belo espírito de artista” da poetisa e o renovador aspecto gráfico do livro de poemas (8). De resto, só um silêncio comprometido e um número não desprezível de vozes coléricas, que não de leitores.
E, no entanto, esse livro debutante, se titularmente parece preso ao epigonismo de-cadentista – e lembro que, como o diz Calinescu (9), o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despi- cienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, para que se não perca esta prova de ineditismo erótico e de ousadia expressional judithiana na década de vinte. Diz o texto:
O teu corpo branco e esguio
prendeu todo o meu sentido...
Sonho que pela noite, altas horas,
aqueces o mármore frio
do alvo peito entumecido...
E quantas vezes pela escuridão,
a arder na febre dum delírio,
os olhos roxos como um lírio,
venho espreitar os gestos que eu sonhei...
..................................................................
- Sinto os rumores duma convulsão,
a confessar tudo que eu cismei!
.................................................................
Ó Vénus sensual!
Pecado mortal
do meu pensamento!
Tens nos seios de bicos acerados,
num tormento,
a singular razão dos meus cuidados!
Fevereiro – Noite Luarenta
1922 (10)
De facto, esta estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt ( e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909), ...) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
Tal vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”. Diz assim o poema:
Através dos vitrais
ia a luz espreguiçar-se
em listas faiscantes,
sobre as sedas orientais
de cores luxuriantes!
Sons ritmados dolentes,
num sensualismo intenso,
vibram misticismos decadentes
por entre nuvens de incenso...
Longos, esguios, estáticos,
entre as ondas vermelhas do cetim,
dois corpos esculpidos em marfim
soergueram-se nostálgicos,
sonâmbulos e enigmáticos...
Os seus perfis esfíngicos
e cálidos
estremeceram
na ânsia duma beleza pressentida,
dolorosamente pálidos!
Fitaram-se as bocas sensuais!
Os corpos subtilizados,
femininos,
entre mil cintilações
irreais,
enlaçaram-se
nos braços longos e finos!
..................................................................
E morderam-se as bocas abrasadas,
Em contorções de fúria, ensanguentadas! (11)
(...)
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transfor-madas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” (e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, ensanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho (12), já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários. Mas não de todos, como veremos à frente...
Não se fica pelo referido o virtuosismo literário de Judith Teixeira. De facto, uma outra voz coeva, que a poetisa portuguesa com toda a certeza desconhecia – e falo de Delmira Agustini (1886-1914), a cultuada pitonisa uruguaia do modernismo hispânico (13) -, manifesta afinidades electivas, poéticas e biográficas, com Judith. Aliás, essa convergência de articulação poética já foi notada por um René Garay (14), que defende que a subversão das imagens consagradas é comum em ambas: o cisne de Delmira nada deve à simbologia do modernismo hispânico glosada pelo seguidores de Ruben Darío, antes se subtilizando em desejo irreprimível no poema “El cisne” do livro Los cálices vacíos (1913), o que, afinal, também acontece com Judith Teixeira nos poemas “Ao Espelho” (“e eu vou pensando, / no cisne branco e mudo / que no espelhante lago adormeceu”) de Decadência ou na composição poética “Ilusão” de Nua. Poemas de Bizâncio (1926), que é, sem dúvida, uma fulgurante exemplificação da capacidade estranhizante das imagens judithianas, com a sua pregnância onírica animada por uma belíssima criatura “esculpida em neve” que tem sobre a nudez jovem do corpo “dois cisnes erectos”. Mas esta atinência é muito mais completa, passando não só pela coincidência biográfica (apodo de sáficas, recurso ao divórcio, colaboração em revistas, rebeldia e insubmissão, silenciamento...), como principalmente por uma “technê” criadora plena de sensualidade e de inferências decadentistas, modernistas e vanguardistas (“Os meus versos não têm escola – são Meus!”, gritará Judith Teixeira, em 1926, na importantíssima conferência De Mim), criando-se no processo estádios eróticos diversos mas interligados entre si pela lei do desejo que é sempre mais imaginação, mais transgressão e mais fantasia.
Nesse mesmo ano de 1923, Judith Teixeira escreveu Castelo de Sombras, livro menos arrojado, de tom vincadamente cinéreo e dessorado, de imediata atracção pela correlação com Castillo Interior ou Tratado de las Moradas (1577) de Santa Teresa de Ávila, não havendo, como poderia parecer, qualquer estratégia de submissão às vozes críticas, até porque as datas dos poemas são coevas das de Decadência. Em 1925, a poetisa dirige a cosmopolita revista Europa, de que se conhecem três números nesse mesmo ano, nela tendo colaborado nomes literários como os de Américo Durão, Aquilino Ribeiro, Carolina Homem Christo, Ferreira de Castro, Florbela Espanca ou Reinaldo Ferreira, sendo ainda de realçar o destaque dado à ilustração, à fotografia e às artes plásticas, com reprodução de obras de Almada Negreiros, Amadeo, Eduardo Viana, Mário Eloy... No ano seguinte, em 1926, publica-se Nua. Poemas de Bizâncio, livro que António Manuel Couto Viana exalta como a melhor e mais moderna criação judithiana. Instala-se de novo a polémica e ARIEL, pseudónimo de Álvaro Maia, sempre ele, refere-se a “versalhadas ignóbeis à Judith Teixeira”. Ainda no calor da refrega, faz publicar a poetisa uma brilhante conferência intitulada De Mim, importante texto para o aclaramento da indenegável inteligência e modernidade da escritora, só espantando que um paratexto literário deste nível permaneça desconhecido de boa parte dos amantes da literatura. Segue-se, já no início de 1927, um livro de novelas intitulado Satânia, e até por aí, pela sugestão titular, é indesmentível a aproximação, fortuita embora, com Delmira Agustini. O rasto de Judith começa a perder-se, farta certamente da restrição isegórica (15) a que tinha sido sujeita e de todos os ecos escandalosos de um jornalismo lateral e de uma crítica literária adepta do mito do “eterno feminino”. Conhecem-se ainda, por finais da década de 30, dois textos de opinião judithianos, um sobre a família, outro sobre o desemprego do espírito, ambos subsumidos já ao conservadorismo, ambos manifestantes de uma límpida e ática escrita.
Mas... quem conhece Judith Teixeira? Encostada a uma época de tradição e de mudança, a notável poetisa vive uma empenhada actividade marginal de transgressão do establishment, sabendo que esse carácter prometeico lhe valeria um longo e comprometido silêncio. Contra essa sanção simbólica, valeu bem a pena uma tão intensa e tão curta vida literária. Assim aconteceu com a uruguaia Delmira Agustini, com a chilena Teresa Wilms Montt (1893-1921) e com a argentina Alfonsina Storni (1892-1938), almas próximas do arrojo judithiano.
2. Mas peguemos em Régio, que desde há tanto espera por nós. José Régio é uma figura referencial da cultura contemporânea e uma das figuras literárias mais importantes do nosso novecentismo, todos o sabem. Avanço quatro nomes maiores e ele lá está: Pessoa, Régio, Vergílio e Eugénio, ainda no activo.
Mas nem sempre assim foi. Régio cumpriu um difícil e atribulado processo formativo. Iniciando-se sob o pseudónimo José Régio com a “Toada de Natal”, de 1921, no semanário A República de Vila do Conde, avançou o poeta com colaborações coimbrãs em 1923 e 1924, em publicações como A Revolta e Bizâncio. Para trás ficavam já os precoces tentames poéticos (Violetas, com doze ou treze anos) e prosásticos da adolescência, bem como a anterior pseudonímia de que é exemplo a subscrição Vénus, no poema “Amor” vindo a lume no jornal O Democrático de Vila do Conde, pelo ano de 1915. Ficavam ainda para trás as já mais maduras colaborações na publicação quinzenal Alma Nova de Espinho e nas portuenses A Crisálida e A Nossa Revista .
Este regiano conspecto debutante tem parelo, como vimos, com a primeira fase de Judith Teixeira, também ela imersa desde a adolescência em tentames literários e em colaborações por jornais e revistas. Voltemos, no entanto, ao tempo de Coimbra, época em que, como o sabemos pelas Páginas do Diário Íntimo, Régio procurava uma fórmula que resumisse o fim da sua Arte e que, até novas ordens, seria aquela que ele plasmou no seu diário com data de 22 de Fevereiro de 1923: “Revelar, numa forma toda criada em relevos ou em sugestões, quanto há em mim de simultaneamente mais humano e mais íntimo.” (16)
José Régio colabora na revista Bizâncio desde o primeiro número. Corre o ano de 1923 e o mês de Março, e eis que a nova revista coimbrã sai a lume com aquela nota programática de abertura da responsabilidade de Alexandre de Aragão: “Bysancio não significa de nenhum modo a sistemática exclusão da paisagem natural e formas nacionais pelo mármore dos cenários recompostos e nostalgias de poentes demorados e doentios. É mais um símbolo estético da união do que é uma resultante comum.” No entanto, e não obstante as palavras iniciais, replasma ainda a publicação coimbrã uma pesada influência simbolista e decadentista. Nela publica Régio o poema “Soneto dos Vencidos”, logo se seguindo, na revista nº 2, a “Canção do Regresso” e, no exemplar nº4, o poema “Humorismo a 40º de febre”. As vozes críticas logo se fazem ouvir, avultando, nessa reacção, os nomes de Álvaro Maia (17), sempre ele ( que por Maio, referindo-se ao segundo número da revista, não se contém que não diga: “O sr. José Régio colabora duplamente: em prosa e em verso. A Canção do Regresso, maus versos: a Ultima pagina, réles prosa cheia de blasfêmia. Cebo para estes bysantinos! Para estas misérias do sr. José Régio não valia a pena estar a incomodar do somno poeirento a derrocada de Bysancio!”), e de um “amigo” de Régio, de apelido Cotta (?) (que diz, no terceiro trimestre de 1923: “Aquilo que V. compõe são bizarros retalhos de coisas que a mim, pelo menos, passam desapercebidas; o que V. ainda mais torna impalpáveis, filtrando-os pela sua imaginação ou mórbida ou exótica. Auguro-lhe que a sua compleição poética nunca se fará conhecer pelas suas composições.”) (18).
É conturbada a iniciação de Régio, que, como Judith, se viu envolto em polémica e com o mesmo Álvaro Maia, e que, ao contrário da poetisa, começa a ganhar notoriedade através da colaboração numa revista demasiadamente presa ao passado, enquanto a autora de Decadência começa a conquistar visibilidade na publicação que era o “canto do cisne” do 1º Modernismo. Ainda assim, evidentes atinências, em época do mais que certo contacto da poesia de Judith Teixeira com o leitor privilegiado que era já José Régio, não obstante a falta de provas documentais ou textuais.
Em 1926, publica Régio os Poemas de Deus e do Diabo , tendo o poeta defendido, no ano anterior, a corajosa e renovadora dissertação para licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra intitulada As Correntes e as Individualidades na Moderna Poesia Portuguesa e subscrita pelo seu nome civil José Maria dos Reis Pereira. Entretanto, Judith Teixeira dá o melhor de si na direcção da revista Europa.
Enquanto se imprime Satânia, vem à tona viva do mundo o primeiro número da revista Presença, trabalho intensamente vivido naquela pequena casa coimbrã da Rua das Flores. E é nesse exemplar inaugural, com destaque de abertura, que se dá o primeiro encontro público de José Régio com Judith Teixeira, precisamente no derradeiro parágrafo do celebrado texto “Literatura Viva”:
“Eis como tudo isto se reduz a pouco: Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo êsse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura viva que êle produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço. E é apenas por isto que os autos de Gil Vicente são espantosamente vivos, e as comédias de Sá de Miranda irremediavelmente mortas; que todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Bôtto; que os Sonetos de Camões são maravilhosos, e os de António Ferreira massadores; que um pequeno prefácio de Fernando Pessoa diz mais que um grande artigo de Fidelino de Figueiredo; que há mais fôrça íntima em catorze versos de Antero que num poemeto de Junqueiro; e que é mais belo um adágio popular do que uma bela frase de literato.” (19)
Esta tirada, que Judith poderá ter entendido como negativa para si, é, a meu ver, o primeiro texto crítico que afirma a presença irrefragável da poetisa na nossa memória literária, aí figurando a mulher-poeta ao lado dos não desprezíveis Sá de Miranda, Botto, António Ferreira, Fidelino e Junqueiro, prova, afinal, da convalidação de José Régio. Aliás, pouco depois do postulado regiano, é um Armando Vasconcelos de Carvalho que a diz, em páginas do Diário de Lisboa, “a melhor poetisa portuguesa da moderna geração”, com “poesias em que a sua autora recorta emoções de seu espírito, dos seus sentidos, de seus desejos.” (20) Nesta senda judicativa seja entendida ainda a opinião de João Gaspar Simões, que, dez anos volvidos, não deixa, no mesmo DL, de louvar a audácia da mulher-poeta (21).
Judith Teixeira é uma mulher de casos e descasos, de encontros e desencontros. Em sua casa consigo se encontraram, em Agosto de 1923, António Botto e Rafael Lasso de la Vega. Todos, incluindo Judith, vieram a encontrar-se com a morte naquele estranho ano de 1959: Judith morre em Lisboa, só e abandonada; Botto é estupidamente atropelado no Brasil; o ultraísta Lasso de la Veja é fulminado, por um ataque cardíaco, na porta giratória do Ateneu de Sevilha.
Não deixa ainda de ser espantoso que este indicioso ano de 2001, ano em que jubilosamente celebramos Régio e a sua acção literária com o pretexto da data do seu nascimento, tenha sido o ano da convalidação académica, aqui em Aveiro, em Outubro último, de uma primeira dissertação nacional e mundial sobre Judith Teixeira, vulto que, aliás, fora, meses antes, capa da revista Faces de Eva da Universidade Nova de Lisboa. Por fabulosa coincidência, que é mais um incindível encontro, a dissertação académica foi orientada pelo Professor Eugénio Lisboa, o mais resistente e estruturado regianista.
Régio e Judith Teixeira: eis um encontro entre uma voz nodal e uma “brasa ardente” que o esquecimento não logrou sepultar. Boa-tarde, Régio. Boa-tarde, Eugénio Lisboa.
* Este texto reproduz, com alterações, uma comunicação apresentada na Universidade de Aveiro (8º Encontro de Estudos Portugueses, 22 de Novembro de 2001) e posteriormente publicada em Presenças de Régio (Universidade de Aveiro, 2002).
(1) Sobre a data de nascimento de Judith Teixeira, nem sempre as informações têm sido as mais correctas. Face à escassez documental, não espanta o equívoco. A edição de Poemas (Lisboa, &etc, 1996), da responsabilidade de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, prova a naturalidade viseense da escritora e transcreve a prova irrefutável do assento de baptismo - que eu também compulsei -, que fixa, em definitivo, o ano de 1880 como data de nascimento da artista, afastando assim a tradição nascente que referia a data de 1873. Menos justificável é, no entanto, aquela imperdoável falha da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira , combatida até à exaustão por Eugénio Lisboa, que “certifica” ter Régio nascido em 1899. E, assim, de falhanços flagrantes se vai construindo uma história que, muitas vezes, é glosa do erro e eco enternecido disso.
(2) Cf. Jornal da Tarde de 21 de Outubro de 1918, p. 1. Trata-se provavelmente do primeiro texto judithiano impresso.
(3) Cf. Jornal da Tarde de 10 de Janeiro de 1919.
(4) Judith Teixeira colabora em Contemporânea com os poemas “Fim” (nº 2, Junho de 1922, p. 59), “O meu chinês” (nº 6, Natal de 1922, p. 128), “A cor dos sons” (3ª Série, nº1, 1926, p. 41) e “Vaticínio” (este nunca passando das provas de prelo para a revista nº 14, a publicar por 1929, e que nunca conheceu a luz do dia).
(5) Em carta dirigida a Cortes-Rodrigues, Fernando Pessoa deixa cair os celebérrimos “que diferença! que diferença!”.
(6) Pense-se no ensaio pessoano “António Botto e o Ideal Estético em Portugal” (Contemporânea, nº 3, 1922) ou no reactivo texto, também de Fernando Pessoa, de título “Sobre um Manifesto de Estudantes”, bem como no intenso “Aviso por causa da Moral” de Álvaro de Campos.
(7) Disse-o Aquilino Ribeiro, em entrevista ao Diário de Lisboa de 20 de Julho de 1923.
(8) Cf. A Capital de 22 de Março de 1923.
(9) Matei Calinescu, As Cinco Faces da Modernidade (Modernismo, Vanguarda, Decadência, Kitsch, Pós-Modernismo), Lisboa, Veja, 1999.
(10) Judith Teixeira, Decadência.Poemas, Lisboa, Imprensa Libânio da Silva, 1923, pp. 15-16.
(11) Id., ibid., pp. 31-32.
(12) Cf. a recensão de Gil de Carvalho à edição de Poemas de Judith Teixeira, da responsabilidade de Maria Jorge e Luís Manuel Gaspar, no Independente de 8 de Novembro de 1996.
(13) Há uma evidente correlação estilemática entre Judith Teixeira e Delmira Agustini, como o comprovará uma qualquer espreitadela à obra judithiana e a Los Cálices Vacíos, por exemplo, da escritora uruguaia.
(14) Cf. René Garay, “Sexus sequor: Judith Teixeira e o discurso modernista português”, in Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher , nº 5, 2001, pp. 53-74.
(15) Sobre o conceito de isegoria, veja-se Telmo Verdelho, “DA ISEGORIA. Breve reflexão sobre o espaço verbal e o direito à palavra”, in Revista da Universidade de Aveiro/Letras, nº 3, 1986, pp. 139-156.
(16) José Régio, Páginas do Diário Íntimo, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 8. Introdução de Eugénio Lisboa e Notas de José Alberto Reis Pereira.
(17) Cf. Álvaro Maia, “Revista das revistas: ‘Bysancio’ – revista coimbrã – nºs 1 e 2”, in Revista Portuguesa de 12 de Maio de 1923, p. 29.
(18) Será esta pessoa de apelido Cotta pai ou familiar de António Rebelo Cotta, que apresentou à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em finais da década de quarenta, a dissertação para Licenciatura em Ciências Históricas e Filosóficas de título Fundamentos de uma Gnoseologia Pura (Coimbra, 1947)?
(19) Presença, nº 1, 10 de Março de 1927, p. 2.
(20) Diário de Lisboa de 15 de Agosto de 1927.
(21) João Gaspar Simões, no “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, nº 86, de 29 de Janeiro de 1937, p. 4, ao proceder à recensão de obras de autoria feminina, relembra o arrojo judithiano.