Sunday, June 05, 2016

Judith, 31 de maio de 2016 – o regresso a casa?


Judith, 31 de maio de 2016 – o regresso a casa?

Jacques Derrida cria um espaço para estas pessoas assim nascidas sob a influência da herança de um nome que é judaico. Judith Teixeira portando-o, isto é, libertando ostensivamente os sinais da inscrição, entronca naquilo a que o filósofo franco-argelino designou como «situação de criança espectral e patriárquica»[1]. E, pensando bem, contando com a vida e a morte, espaços inevitáveis sem aprendizagem, eis que, no caso de Judith Teixeira, ao silêncio da primeira noite sobrevém o dia iniciático, começado, é certo, mais atrás, naquele último quartel do século XIX, preso guturalmente a uma cicatriz sociológica e geográfica de etiologia viseense. Uma marca decisiva, pois, na pele cultural de uma artista encravada ab initio, como vimos, entre a margem e a diáspora.
Em 1880, Viseu era o que era – uma cidade rural, sem mais que mostrar do que um já combalido casco histórico, bastante delapidado por poderes pouco dados à conservação ali por inícios do século e com presença assinalada de judeus desde tempos remotos, «havendo notícias da sua fixação nesta zona muito antes da invasão dos mouros em 711»[2]. Cumpre-se nesta imagem o asserto de José Mattoso que fala de um “país feito de bocados que nada consegue unir”[3].
Sobrevindo, Judith Teixeira ganha as luzes do palco cultural português e a década de vinte desse século XX só o poderia replicar no porvir. Mas não, que a conveniência não deixava. Atribui-se-lhe, pois, um lugar qualquer ou um não-lugar, seguindo-se a espetralidade derridaniana.  Um escritor sem lugar há-de ser um bom lugar literário, nomeadamente quando o presente arrasta consigo um bom número sem existência colado ao êxito e à sagração pública. Passada a usura, quantos animadores da coisa literária nossa coeva resistirão contra o tempo, como acontece com Judith Teixeira, deslembrada e fulgurante mulher-poeta do século XX português, rompendo pelo presente século como se não houvesse morte?
Sem hesitações, é Judith Teixeira a única mulher no modernismo português e um caso de safismo literário que a torna expoente de uma deriva original que é uma face autêntica de modernidade artística e de coragem expressional.
Pego, quase ao acaso, n’ A Capital de 3 de Março de 1923 e leio, entre suicídios e greves de fome, nas notícias de última hora, sob o título “Literatura imoral”: «À polícia foi dada ordem para serem apreendidas as edições de mais livros tidos como literatura imoral.”» A sanha persecutória relativamente a obras literárias, que não era súbita, caracteriza o estertor da 1ª República e aparece concretizada na mesma coluna do jornal do dia 5 de Março, debaixo da intitulação “Apreensão de livros”: «Em conformidade com instruções superiores foram apreendidos pela polícia os livros intitulados: Sodoma Divinizada, Canções e Decadência.» As obras de Raul Leal e de António Botto vieram a ser defendidas por Fernando Pessoa, que revelou a sua misoginia ao omitir o nome da poetisa. Ao contrário, um António de Monsanto, que, no mesmo diário, em asserto judicativo, considera a obra judithiana elevada, emotiva e delicada, estranhando a campanha vexatória contra a edição  “notável de elegância” e de “sumptuosa combinação estética”.
Judith Teixeira nasceu, em Viseu, no dia 25 de Janeiro de 1880, pelas 9 horas da manhã, na Viela de S. Francisco. De acordo com depoimento seu, os primeiros tentames poéticos terão acontecido antes do último lustro do século XIX, conhecendo-se, bem mais tarde, entre 1918 e 1919, incursões da autora pelo conto, sob o pseudónimo de Lena de Valois.
Mas falar de Judith Teixeira é entrar na agitada década de 20 e presenciar «as orgias de morfina» e «as horas sensuais, / as horas delirantes», dos poemas “Fim” e “O meu chinês”, publicadas por José Pacheco, na sua Contemporânea, por 1922; o escândalo de Decadência (1923), com uma rede voluptuosa de sinais explícitos, como acontece no poema “A estátua”, onde uns «seios de bicos acerados» são a singular razão dos cuidados, ou no poema “Perfis decadentes”, onde «Os corpos subtilizados, / femininos» se enlaçam, mordendo-se as «bocas abrasadas, / em contorções de fúria, ensanguentadas!».
Conhecer Judith Teixeira é ainda lembrar o equilíbrio cinéreo de Castelo de Sombras (1923); a coragem manifestada em Nua. Poemas de Bisâncio (1926), ao dedicar a obra aos “braços delgados, e brancos, e nus” da sua Quimera; a força assertiva da conferência De Mim (1926); ou a toada estranhizante das novelas Satânia (1927).
Para além de poeta, ficcionista, ensaísta e conferencista, Judith Teixeira foi também tradutora e cronista, tendo ainda dirigido a revista Europa, de que saíram três números, em 1925.
O último poema de Decadência, que tem o título “Última frase”, assume um tom admonitório:
Minha alma ergueu-se para além de ti…
Tive a ânsia de mais alto
- abri as asas, parti!

Outubro
1922

Era a partida para uma viagem que vai encontrando um fim. Fim, aliás, que é hoje um evidente regresso a casa, no sentido de Rilke, um voltar à condição que deverá ser início do muito por fazer – a atribuição de uma rua, por exemplo, cumulada, também por exemplo, com homenagem estatuária, seria pedir muito?
Com Rilke acabo. E lembro, no passo, que acabar é sempre um novo início:
A minha luta é esta:
sagrado de saudade
divagar pelos dias.
Depois, largo e forte,
Com mil raízes fundo
mergulhar vida dentro –
e, amadurecido em dor,
ir longe pra além da vida,
longe, pra além do tempo![4]


Viseu, 31 de maio de 2016
Martim de Gouveia e Sousa



[1] Jacques Derrida, Mal d’ archive, Paris, Galilée, 1995.
[2] Lúcia Alexandra Ferreira, «Viseu.», in Lúcia Liba Mucznik, José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Esther Mucznik e Elvira de Azevedo Mea, Dicionário do judaísmo português, Lisboa, Editorial Presença, 2009, p. 544. Não parece correta, na mesma entrada, a informação de que a judiaria viseense se situaria na Rua Direita.
[3] José Mattoso, Portugal – O sabor da terra, Lisboa, Círculo de Leitores, 200 , p. .
[4] Rainer Maria Rilke, Poemas. As elegias de Duíno. Sonetos a Orfeu, Porto, Edições Asa, 2001, p. 29.

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Esta é a minha intervenção lida no dia, não estando presentes as tergiversações, iluminações e improvisos. É, no entanto, uma boa base.

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