Saturday, July 29, 2006

Judith Teixeira e Gustav Klimt



“Decadência”, esse livro debutante de Judith Teixeira, se titularmente parece preso ao epigonismo decadentista – e lembro que, como o diz Calinescu, o Decadentismo é uma das faces da modernidade -, contém em si virtuosismos que permitem aproximá-lo do Modernismo, seja pelo vezo sáfico, seja ainda pelo dialogismo com as artes plásticas, não sendo despicienda ainda a sugestão surrealista que perpassa em alguns desses poemas. Lembro, por exemplo, o poema “A Estátua”, com a nota de ineditismo erótico e de ousadia expressional.
De facto, tal estesia perante o corpo feminino que o sujeito poético manifesta, se, por um lado, convoca as mulheres esculturais de um Klimt (e lembro obras suas como “O Teatro de Taormina” (1886-1888), “A Escultura” (1896), “Nuda Veritas” (1899), “Judith I” (1901), “Judith II” (1909)) e o conexo deslumbramento pelo narcisismo lésbico, universo a que o mesmo Klimt (1862-1918) também aderiu (uerbi gratia, com “Serpentes de Água-II” (1904-1907)), não deixa ainda de ser verdade que nessa obsidência se tipifica uma indenegável e modernista estratégia da ruptura. Aliás, a interactividade da obra literária judithiana com as artes plásticas, no bom sentido dos melhores modernistas, será uma constância ( poemas “Por Quê?” e “Liberta”, ambos de Decadência, são exemplo suficiente), tendo a própria poetisa sido retratada por Carlos Porfírio (1922 ou 1923) e por Guilherme Filipe (1926), dois pintores de manifesta actualidade epocal.
A vertente homoerótica, projectada ou vivenciada pela poetisa, é, na sua constância sem exclusivismo, uma característica não despicienda à época – e relembro que falamos de 1923 –, transformando-se, nesse indefectível arrojo contra as vozes da turba escandalizada, em condição de originalidade poética sem sujeição. E é assim, de novo no rasto de Klimt, cuja obra Judith Teixeira parece ter conhecido e interiorizado, que encontramos no poema “Perfis Decadentes” uma intensa cena de deflagração lésbica do amor que a poetisa poderia perfeitamente ter ido “beber” à já mencionada “Serpentes de Água II” do pintor austríaco, obra que retrata, segundo Gilles Néret, “um mundo narcisista povoado de lésbicas que se enrolam em espirais nas correntes, feito de sonhos aquáticos”.
Se, do ponto de vista temático, as semelhanças são iniludíveis, não deixa ainda de ser verdade que estilematicamente há traços afins que permitem afirmar haver relações de intertextualidade entre os dois autores e as duas obras citadas: os vitrais judithianos serão, afinal, a linfa klimtiana; as algas multicolores e coruscantes do pintor são transformadas por Judith “em listas faiscantes, / sobre as sedas orientais / de cores luxuriantes”; as rotas aquáticas em espiral da obra plástica são agora “nuvens de incenso” ( e olhe-se o desafio!) e “as ondas vermelhas do cetim”; os corpos oblongos e estilizados do pintor Gustav são em Judith longos, “esguios, estáticos, /...corpos esculpidos em marfim”; os klimtianos rostos de mulher, misto de frigidez e efervescência, são pares dos judithianos “perfis esfíngicos, / e cálidos” que estremecem “na ânsia duma beleza pressentida, / dolorosamente pálidos!”; os compridos braços de dedos longilíneos das mulheres narcísicas do artista de Baumgarten (Viena) estão também presentes “nos braços longos e finos” das criações da mulher-poeta viseense; o halo irreal ou surreal que recobre o conjunto plástico de tonalidade onírica é equipolente da atmosfera de sonho que conquista o centro do poema através daqueles “corpos subtilizados, / femininos, / entre mil cintilações / irreais”; e, por fim, uma mesma dimensão de tragédia e de revolta decadentista-modernista na deflagração amorosa, citando eu o exuberante exemplo “E morderam-se as bocas abrasadas, / em contorções de fúria, en- sanguentadas!”.
Tragédia decadentista e coragem modernista, eis o que se colhe desta interacção textual. Judith Teixeira, influenciada pelas artes em geral e pelas artes plásticas em particular, desde o seu primeiro livro de poesia, de que citei exemplos evocativos, prova obedecer ao preceito de Georges Bataille segundo o qual a arte autêntica é forçosamente prometeica. A transgressão e o voo livre pelos interditos faziam de Judith Teixeira, desde 1923, um caso raro de afirmação de um lugar poético original e sem sujeição. Mas, como sempre acontece, estar com os tempos modernos era ainda demasiadamente cedo para que a sua inscrição literária se viesse a fazer em época de fundamentalismo misógino e de gradual fechamento político. E, como o diria um Gil de Carvalho, já no último lustro de Novecentos, ela era um misto de Florbela Espanca e de Irene Lisboa, sendo, por isso, de lamentar tão grande silêncio dos escoliastas literários. Mas não de todos...

Tuesday, July 25, 2006

ainda sobre a moral

Que o corpo vos seja limpo, caros leitores. E que a centelha de fogo, que brilha sobre o céu da cidade, ilumine as mentes vãs, esvaziadas, sabe-se, do respeito pelo outro que se assume. Eu não quero nada mais suave. Antes desejo o tempo da limpidez mental, dieta impoluta adscrita por ventos de Harvard e pela filosofia pragmática que decorre da vida quotidiana.
Este é o meu corpo exposto na inscrição do texto. Aquele amigo, que outro amigo ama ou deseja, é também amigo meu na diferença igual que não vejo. Que me importa a diferença que cada dia se renova, se eu sou eu e o outro é o outro no respeito que somos. Cruzo a vida sem fobia com a amiga que abraço porque assim sou. E se não, por que não os mesmos amigos e amigas, sem tique ou etiqueta?
Marcho contra a hipocrisia e a fobia que fielmente crêem no caminho solitário do “bom amante”, como se o corpo fosse dominável pelos fungos das gavetas apodrecidas! Nada pode ninguém, se o corpo se levanta e escolhe o caminho.
Um fulgurante António Sérgio, em ensaio parisiense datado de 1928, reconhece que o amor “é mais forte do que nós supomos”, devendo sentir-se “sob a forma luminosa da inteligência, ao calor fulgente da compreensão.” Eis, pois, um preceito que não deve ser esquecido, nomeadamente por aqueles em exercício cultural de investidura pública. Fora do espaço isegórico da “solidariedade vivida” (Urbano Tavares Rodrigues), já só resta um negro terreiro de impreparação e de incompetência…
A perfídia de quaisquer actos censórios desinscreve e deseduca. Inscreve e educa quem vai lembrando, como uma lição contínua, o elegante “Preface” de Oscar Wilde a “The Picture of Dorian Gray” de que extraio o excerto que cito: “Those who find ugly meanings in beautiful things are corrupt without being charming. This is a fault.”
A cruzada moralista lisbonense que inundou a década de 20 do século passado lançou para o fogo inquisitorial autores como António Botto, Judith Teixeira ou Raul Leal, apodados, em conjunto, de autores de “literatura dissolvente”. Em defesa da liberdade criativa insurgiu-se, por exemplo, um Fernando Pessoa, que litigou brilhantemente com o persistente Álvaro Maia, assanhado polemista e guardião da “boa moral”.
Arte do seu tempo contra a tradição do passado são, por exemplo, “O Banhista” de Cézanne (c. 1885), a impressão em gelatina e sais de prata das fotografias que captam virtualmente o movimento do corpo de Marey (?, c. 1890-1900), “A Semente de Areoi” (1892) de Gauguin, a “Madonna” (1895-1902) de Munch, a “Rapariga com Cabelo Negro” (1911) de Schiele, “Fränzi Reclinada” (1910) de Heckel, “Banhistas que atiram Juncos” (1909-1910) de Kirchner, “A Dança” (1909) de Matisse, “O Assassino em Perigo” (1926) de Magritte, “Nu na Casa de Banho” (1932) de Bonnard, “Pin-up” (1961) de Hamilton ou “Romance Familiar” (1993) de Charles Ray. E, no entanto, é evidente que a fulgurância destas obras dimana da nudez do corpo de homens e de mulheres e não é lícito encarar-se a sua dilucidação com o cadinho da suavidade. Nem penso que alguém responsável o tenha feito.
Em cada cidade há sempre um Álvaro Maia à espreita. Com estrondo, as primeiras palavras já dizem tudo. Em Viseu, se a pergunta era mais do que retórica, afirmo que as pessoas reagem com indignação a actos censórios e diminuidores das liberdades artísticas. Um museu, até etimologicamente, deve ser um lugar interactivo de multímodas artes. De liberdade, de direito à palavra, de direito à diferença.
Assim não sendo, há um caminho que quem com poder deve traçar. Passam quase cem anos sobre a vergonha da perseguição à chamada “literatura de Sodoma”. Nesse abismo persecutório, uma mulher de Viseu, a poetisa Judith Teixeira, sofreu digna e superiormente os golpes da intolerância.
Não faltando a coragem, corte-se o mal e a raiz. Espero, entretanto, não pensar por muito mais tempo naquele poema de uma mulher afegã, que Sayd Bahodine Majrouh resgatou do silêncio, e que aplico à circunstância: “Tenho na mão uma flor que murcha / Não sei a quem a dar nesta terra estrangeira”.




Friday, July 21, 2006

Judith Teixeira: uma poetisa de Viseu no Modernismo português

Que ninguém fale contra este estranho e esquecido canto. Ritmo selvagem que é, vão estas palavras do fragor do fogo embater no impossível esquecimento. Afinal, que país somos e que literatura queremos, se assim ocultamos uma Judith Teixeira, mulher modernista, misto de Florbela Espanca e Irene Lisboa, com laivos esteticistas à Mário de Sá-Carneiro? Quantas mulheres assim, nas páginas de história literária, que a tornem mesmo deslembrada dos seus mais próximos e dos burocratas da cultura?
Com o pretexto dos oitenta anos que passam sobre o início da colaboração de Judith Teixeira (1880-1959) com a revista Contemporânea, é o momento de afirmar o injusto esquecimento a que tem estado votada a singularíssima mulher-poeta viseense. Afinal, trata-se da única mulher no modernismo português, com ligações documentáveis ao ultraísmo espanhol.
Sinceramente penso que Judith Teixeira - a mulher-cometa que, devedora do decadentismo epigonal e da vertigem modernista cruzou a década de vinte - merece um lugar de razoável visibilidade na nossa literatura, não obstante o estranhíssimo silêncio com que tem sido contemplada pela grande maioria dos historiadores e estudiosos da "coisa literária".
A actividade poética de Judith Teixeira, e não cessam aí os seus méritos, encerra a revelação, a sabedoria e, obviamente, o amor, características que, aliás, conduzem ao conhecimento do ser original. Dessa voragem autognósica, que é também iluminação do ser e poetização subjectiva do ser, destaca-se uma original e interactiva apropriação dos kierkegaardianos estádios imediatos de Eros , podendo um mesmo poema apresentar três estádios que vão da contemplação melancólica à consumação desviante. E o que ressuma desse vórtice poético é sempre, com o acúmulo de vozes autoritárias que cada vez mais despontam, a certeza de se estar perante uma voz feminina originalmente viva.
Judith Teixeira é uma voz lírica que é um dos grandes poetas do amor do nosso século. Marginalizada por muitos, ela cumpriu uma expiação que só os eleitos ousam sofrer e superar. Mas, afinal, não é da margem que se vê melhor? Não procura o Amor, como codiciosamente o notou Kierkegaard , um recanto isolado?
É o momento dos dias limpos para uma voz sonegada e esquecida. Judith Teixeira, lenta e seguramente, vai emergindo pela força de múltiplas vozes que têm vindo a privar com o fogo das palavras descomprometidas.
Muito tempo passou sobre aquele grito valorativo e contristado de Aquilino Ribeiro contra a intolerância. Judith, sujeito sem sujeição, que muito antes "dos nossos dias", como diria um Eugénio de Andrade, se deu ao corpo e, por via disso, à voz do silêncio.
Este é, por isso, mais um passo contra a obscuridade que reputo da mais vincada importância. Um passo ao lado de outros passos, à espera de novas incisões.
Os de fora da literatura dirão que este é um excurso de arqueologia literária. Afirmando e infirmando, sem perder de vista a munificiência do labor intelectual que sempre comporta dissentimentos ecdóticos e hermenêuticos, bem como indecisões e dúvidas derivadas de lacunas e de impossibilidades investigativas, é certo que a minha perquirição judithiana permite já o protaimento da amplitude da acção literária da mulher-poeta em quem um Albino Forjaz Sampaio divisava já a originalidade e o interesse artístico. Não se limita a sua acção literária à década de vinte. O conhecimento textual da obra de Judith Teixeira permite agora, com os materiais por mim carreados, a fixação do terminus a quo no ano de 1918 e o do terminus ad quem no ano de 1938, alargando para vinte anos o campo de análise dos ainda poucos mas determinados escoliastas judithianos. Sei, no entanto, como o diz a poetisa, que “Há-de chegar o dia / em que a [...] tristeza há-de acabar...”. Vai chegando em cada dia que passa.
De Judith Teixeira e dos seus oceanos rubros de sensualidade, um longo caminho trilhado ao sabor do sentimento, ressuma uma notável originalidade e a indiscutível força afirmativa de uma mulher que desafiava quaisquer estereótipos associados ao mundo feminino, sem o mais leve assomo de sexismo ou de reinvindicação parler femme , o que parece um mergulho parcial nos quesitos futuristas, sempre infensos ao feminismo e à debilidade. Tal presença do eu assertivo, que se estende a toda obra da escritora viseense, tem principalmente lugar na década de vinte do século que, de acordo com Norbert Elias, assistiu, com o acesso das mulheres a uma identidade própria, à maior revolução da história da sociedades ocidentais.
A permanência de um forte e instante eu na poetisa de Decadência exemplifica um espírito que, não obstante o dominante subtrato decadentista e o, por vezes, exuberante modernismo, percorre a cultura portuguesa e que se revela naquela cosmovisão peculiar com raízes no saudosismo, no solitarismo vivencial e no inquietismo. António Manuel Couto Viana, referindo-se ao lirismo de Judith Teixeira, defende tratar-se de uma "poesia nocturna, dionisíaca, que poucas vezes a alegria solar veste de luz."
Judith Teixeira, forte eu-assertivo, não é uma identidade dominada, porque, afinal, para um espírito de livre-exame, ser sujeito não poderia ser sujeitar-se. E esse é o voo da condição humana em busca da transcendência e da liberdade.
Voo final que afirma que o dissídio vivencial judithiano e o conexo alor lírico desrealizante são uma marca infungível na literatura portuguesa e um corte exicial com o esquecimento, como o parece dizer, desde há muito, este passo judithiano modulado por mim em palavra final:


Minha alma ergueu-se para além de ti...
Tive a ânsia de mais alto
-abri as asas ,parti!

Outubro
1922

Tuesday, July 04, 2006

Judith Teixeira em "José e os outros" de José-Augusto França



José e os Outros. Almada e Pessoa (romance dos anos 20) é uma narrativa de José-Augusto França, vinda a lume em Abril último, com a chancela (habitual, aliás) da Editorial Presença.
Não podendo dizer que estamos perante um grande romance, parecendo-me até que a espantosa informação do Autor tolhe a eficácia do texto, direi que a criação do estruturado intelectual é um importante feito paraliterário. Sem denegação do lume, que existe descontinuadamente, outro fulgor mais importa: conhecer a década de vinte lisboeta obrigará, doravante, a que consideremos esta publicação como inquestionável elemento de leitura. E outros e muito importantes existem na bibliografia de França.
Dentro do romance cruzam lugares (o Chiado, o Rossio, a Brasileira, o Bristol, o São Carlos, o Museu das Janelas Verdes…) e personagens reconhecíveis (Almada, Pessoa, Stuart, Barradas, Pacheco…). E existem ainda alusões que são marcos geodésicos de uma época fulgurante e contraditória.
Se é explicável que Thereza Leitão de Barros não tenha incluído Judith Teixeira na obra Escritoras de Portugal (Génio feminino revelado na Literatura Portuguesa), ensaio publicado em 1924 e muito em cima do êxito judithiano, o contrário penso relativamente a algumas obras de referência (dicionários de…) sobre mulheres intelectuais saídas nos últimos tempos, que, estranhamente, têm vindo a esquecer a poetisa aparatosamente.
O romance de José-Augusto França, referindo-se a Judith Teixeira, fala da sua “poesia sensual, ‘amorosa’, ‘pagã’”, que chocava com as “más intenções machistas”. Mais à frente, destaca-se a atenção da revista Europa a tudo o que acontecia de novo em arte.
Funda, a memória cava…